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[DA SEPARAÇÃO ENTRE POEMA E POESIA]

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[foto de peter turnely] [penso na figura do poema: plâncton, âmbar, abelha, ou grãos de trigo, em pendões, ao vento. penso nessa figura que nada tem com a poesia. penso no organismo, no indivíduo, penso na ilha e não penso no continente. penso a figura de um tufo de algodão que rola, deriva, ao sopro de uma ventania. penso na figura em minudência ímpar, esses caroços do júbilo e do êxtase. penso nessa figura a que se denominou poema, já tarde demais quando a poesia era já forma adiposa, teia-aranha. penso na figura do que é menos, penso nos engenhos da partícula, o plâncton, o âmbar, o pólen, e não penso na forma-em-abundância, nos cargueiros sinistros oceânicos, não penso na forma que é discurso. agora é quase noite, e a poesia é esse bolero sob o poste: lacrimosa, pantagruélica, a gula pela gordura. agora é quase noite, e o poema é esse farelo de pão sobre a toalha, nele cabe uma galáxia, tão condensável é o átomo de sua anatomia.]

[A TELA ABERTA EM SEU VAZIO EM BRANCO]

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[com a tela aberta  em seu vazio em branco,  eis que surge um falso endecassílabo,  depois uma estrofe  inglesa  metro burniano,  igualmente falsa, pois  sem  tetrapodias iâmbicas,  sem diapodias iâmbicas,  lembrava  mais um haicai que cresceu mais  que o lago,  mais que o sapo de bashô  em seu salto dentro do círculo. aguardo outro acontecimento  nessa tela  em seu vazio em  branco,  um pixel   que seja em algum recanto,  mínimo  que seja  e que lembre um pirilampo,  mas vem um diambo  com seus dois  iambos, depois um falso dímetro,  pois manco  com um dos pés  em solavanco,  assim como eu próprio ando  pelo mundo.  ah um dispondeu  que confundiu as quatro  longas sílabas  e construiu um báquio, as breves  seguidas  por duas longas,  equívoco que a tela em seu vazio  branco atraiu...

[A NATUREZA DOS VENTOS]

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1. Um vento que vinha lá dos anos 1970 entrou na casa, fez redemoinho pelos cômodos, mas não saiu. Ficou em algum desvão, em algum recanto. 2. O velho estava na poltrona e não se cansava de examinar a palma da mão esquerda. As linhas. Os calos eternos. A vermelhidão nas juntas dos dedos. 3. O velho percebeu que o vento que entrara na casa vinha lá dos anos 1970. Sentiu na flor da pele a presença de um conhecido, pois cada rajada de vento traz com ela o espírito de sua época. 4. Assim o velho pensou e prosseguiu com a palma da mão esquerda aberta, com os dedos esticados, ali estava a linha do princípio e do fim, e a linha estranha, quase imperceptível, linha que talvez guardasse todos os enigmas. 5. Da estante, as lombadas de antigos livros pareciam olhar para o velho. Também os vinis empilhados perto de um vaso quase lhe acenavam: Joan Baez, Willie Nelson, Victor Jara, Sidney Miller. 6. Por dentro, em suas entranhas e vísceras, o velho revisitava lugares distantes, pessoas distantes, c...

[NATAL DE 1956]

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Meu pai morreu no Natal de 1956, aos 38 anos. Décadas mais tarde, induzido muito provavelmente por um ataque de soberba, imaginei que ele tinha combinado de morrer no mesmo dia, talvez com poucas horas de diferença, com Robert Walser, aos 78. Meu pai, morto no interior de Minas; Walser, estirado na neve em Herisau, na Suíça. Sim, foi mesmo soberba minha unir essas datas de mortes: a de um comerciante de secos e molhados, dono do Armazém Nossa Senhora das Graças, com a de um escritor que, assim que eu conhecia mais e mais a sua obra, mais ele se tornava inseparável, leitura frequente, motivo de visitação e revisitação contínua a seus livros. Não me lembro quase nada do meu pai. A não ser aqueles fiapos de imagens que uma criança de cinco anos pode captar em sua infância. E esses fiapos de imagens se misturam obviamente naquele território limítrofe entre sonho e vigília, entre o que é e o que não é, cenas borradas ou em dissolução até o nada de uma parede branca. Hoje tenho idade para se...

[MAROLAS DE LEMBRANÇAS]

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“Alonguem a história”, diz a voz esbanjadora. “Encurtem a história”, diz a voz sovina. Há histórias que cabem dentro de uma pílula. Há histórias que lembram uma barrica de araruta. Quem é esse que vai pela estrada com passinhos tão curtos e ainda leva um guarda-chuva sob o braço? E aqueloutro que vai pela praça com passadas tão largas, tão gulosas, tão vorazes? O primeiro pratica histórias curtas; o segundo exibe histórias latifundiárias. Ah, a literatura. Por falar em literatura, certa vez, numa das mesas do Pelicano e atendido pelo garçom cujo apelido era Jean-Pierre, eu disse para alguém-que-já-não-me-lembro-quem o seguinte pensamento de gente ociosa, sem ter o que fazer: “Posso estar equivocado, mas enquanto Jaime Prado Gouvêa vem de uma linhagem Fitzgerald, Luiz Vilela vem de uma linhagem Hemingway”. Não sei o que respondeu aquele alguém-que-já-não-me-lembro-quem. E o mais provável é que a conversa tenha morrido ali mesmo, sem choro nem velas, nas espumas dos chopes. Belo Horizont...

[ENQUANTO VOCÊ LÊ UM LIVRO]

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Do nada, a frase pulou nos olhos do leitor. Ia o leitor a passos de cágado, muito assim-assim devagarinho em sua leitura, quando a frase, do nada, pulou nos olhos dele. Pulou mesmo. Assemelhou-se (a frase saltante) a uma lagartixa branca. Ou à língua de um sapo. Uma frase que pula ou salta nos olhos dos leitores é fenômeno raro. Ou melhor: inédito. Em sentido figurado, é claro que, havendo a sedução de parte a parte (do leitor pela frase e da frase para o leitor), há, sim, frases que tomam de assalto os olhos do leitor ou leitores que mergulham na frase como se em uma praia grega: pela beleza contida na frase, por exemplo. Ou por seu ritmo. Ou por seu mistério. Já o fenômeno em questão merece análise mais rigorosa. A frase que pulou era de uma novela narrada em primeira pessoa com cinco personagens (dois homens, duas mulheres e um grilo falante). Não menciono o nome do autor para não haver celeumas em um meio tão sujeito a intempéries. Ela possuía (ou possui) doze palavras. Estava (ou ...

[SOMOS TODOS PERSONAGENS?]

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Pela rua ou pela estrada afora, você vai sendo você mesmo ou vai sendo outro ou outra? A pergunta é oportuna. Ou pertinente. Isto porque há quem diga que todos nós somos nada mais nada menos do que personagens. Personagens de bons ou maus livros, de boas ou más histórias. Quem sabe se este senhor que você acabou de cumprimentar na descida da rua Nelson Gallo em direção à rua Oswaldo Cruz ninguém mais é do que o Rodolfo, personagem principal de um livro sobre colecionadores de libélulas? Rodolfo certamente olhou para a minha estampa, eu com o meu boné e a minha sacola de compras (nela está escrito “Bahia é uma palavra bonita”) e pensou: “Este é o Vasco, protagonista do livro As laranjas do visconde . E aquele baixote que sobe a rua? Ah, aquele é o Adauto Cortes, cujo monólogo no livro Batam os tambores, garoto tanto comoveu os leitores e leitoras adeptos dos livros pavimentados e sustentados pela escrita de si. Ricardo Pôncio, por sua vez, pelo fato de ser personagem de um livro ainda ...

[O JEITO DE OLHAR PARA O PRIMEIRO LIVRO]

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Em 1980, publiquei meu primeiro livro. Poesia, sim, senhor. Livro nascido de um projeto que levou, em 1979, cerca de 40 artistas ao Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, representantes de áreas como artes plásticas, cinema, música, dança, teatro e literatura. Na área de literatura, fomos Adão Ventura, Ronald Claver e eu. Essa trupe toda ficou no Vale em torno de 15 dias, se bem me lembro. Com muita pândega e pouco juízo. Dei ao meu livro o título um tanto brejeiro de Cantigas de amor & outras geografias. Poemas secos, áridos, estranhos, estrambóticos, embora um deles tenha sido musicado pelo compositor Melão sob o nome de Nas águas de Araçuaí. Melão e Lery Faria (parceiro que nos deixou tão cedo não faz muito tempo) voltaram da viagem com material que renderia um LP do mais alto nível, talvez o melhor trabalho gestado por esse projeto com patrocínio do governo do Estado, em plena ditadura. O governador de Minas era Francelino Pereira. Quarenta e cinco anos, portanto, me separam daqu...

[AS FERRAMENTAS DE ESCREVER]

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Meu convívio afetuoso e amantíssimo com máquinas de escrever (ainda possuo uma Lettera 82 muito graciosa, presente do meu filho David) começou em 1971. Recém-chegado de Minas, obtive o meu primeiro emprego em São Paulo na bizarra função de limpador de tipos. A empresa ficava na Consolação, bem diante da Biblioteca Mário de Andrade. Eu não apenas limpava os tipos com uma borracha moldável, mas, também, entregava à clientela as máquinas já reluzentes e lustradas. Supimpas. Quixotesco, flanava a pé com as máquinas acomodadas no peito pelo centro velho da cidade. Desse convívio inicial como faxineiro das borras de tinta acumuladas nos tipos, me transformei alguns anos depois em usuário, ao começar a minha vida de redator ali por 1975/76. As Olivettis e as Remingtons tornaram-se então minhas inseparáveis companhias. E as Remingtons de teclas verdes, paixão de tantos, seriam o patamar mais alto que os meus dedos (treinados em um curso de datilografia no bairro Calafate, em Belo Horizonte, al...

[É VERDADE QUE VOCÊ NÃO COMEÇOU O LIVRO?]

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A folha está vazia, a tela está em branco. Nelas não há nenhuma letra. Você não escreveu ainda um mísero signo ou sinal para poder anunciar em voz alta ou em voz baixa ou em voz alguma: “Comecei o livro”. O livro não foi começado, não há ali vestígio nem de rasuras. Ou de garatujas. Ou de um amontoado de palavras sem sentido ou ligação entre elas como álibi para que você diga: “Eis o começo”. O dia já avança a tropel de potro sem rédeas e nada surgiu nesse deserto que é uma folha vazia ou uma tela em branco. Esta cena acima é uma cena repetitiva, comum, sem novidade. Todos os que escrevem a conhecem. É cena íntima. Seus efeitos também são conhecidos: adiamento, desistência ou permanência imutável à espera de um jorro discursivo para apaziguar sua ansiedade. Quando vem o jorro da escrita, bimbalham os sinos. As cotovias revoam em espaço aberto. As papilas adormecidas acordam para sabores desconhecidos e o calo no pé torna-se agradável. Essas idiotias todas que se aglomeram em volta do e...

[KANT E A RAZÃO PURA NA TARDE DO BAIRRO]

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[kant tomou a razão pura entre as mãos, moldou-a, agregou à massa ingredientes próprios para a goma, sovou a razão pura com esmero e vigor, e então, quando a bolota já adquiria uma consistência elástica, ele esticou a razão pura sobre a mesa, esticou-a de um canto a outro daquela mesa onde as melancolias costumavam cantar boleros e tangos.]  [depois kant puxou a bolota da razão pura  de modo que, da longa tira emborrachada, bem esticada, pudesse soar um dó maior ensolarado pela tarde do bairro.] [e os meninos.] [e os meninos, toda a criançada de pés no chão e narizes líquidos, toda a meninada do bairro logo pôs caras e carinhas nas janelas.] [os meninos viram quando o dedicado kant dedilhava com o dedo mindinho a goma esticada da razão pura.] [os meninos viram aquilo.] [eles viram aquilo e acharam  muita graça.] [como é que o velho kant havia conseguido fabricar tal razão pura esticada sobre a mesa das melancolias?] [parecia até uma corda de viola, pois ...

[OS ESQUISITOS, COMO NÓS, À BEIRA DO DOURO]

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["Nenhum de nós recorda o texto da lei que obriga a recolher folhas secas", diz Julio Cortázar ali pela página 129 de A volta ao dia em oitenta mundos , quarta edição da Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, outubro de 1968. Ndalu, que é versado nesses temas um tanto em desuso, e é capaz de paradas súbitas na rua ao ter o olhar atraído para uma pedra, um besouro morto ou um papel com letrinhas manuscritas, propôs a Jorge um jogo enquanto caminhávamos pela manhã à beira do Douro.  Vínhamos de Dublin, fizemos uma parada de dois dias no Porto, mas o nosso destino era mesmo Havana, pois ali, naquele mês de agosto, participaríamos do XX Encontro dos Livros e Personagens Inexistentes. "O jogo consiste em ativar em nós o fervor para a esquisitice", explicou Ndalu.  Soprava do Douro um ventinho travesso e mefistofélico. Caminhávamos lentamente e descompromissados. E havia como que um ritmo frásico de lerdo e preguiçoso soneto em nossos pés. Em meu bolso, o bo...

[MÍDIA DO MEDO]

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[jornal folha de são medo, jornal estado de são medo, jornal estado do medo, jornal hoje do medo, jornal o medo, rede medo, rede proselitista do medo, veja o medo, isto é o medo, época do medo, federação das indústrias do medo, conselho federal do medo, associação dos cultores do medo, porque o que importa é o medo, disseminar o medo, rezar pelo medo, cantar o medo, ninar o medo, acalentar o medo, semear o medo, cultivar o medo, industrializar o medo, porque o que importa é o medo. eu é que não entro no jogo desse medo.]

[É UM ENGANO IMAGINAR QUE A RUA DA BAHIA DEU A DRUMMOND A PEDRA NO MEIO DO CAMINHO]

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[A Rua da Bahia é uma rua que vai daqui para acolá e de acolá para nenhures.  É rua em declive ou em aclive, conforme os óculos, conforme o destino. Sobe, se você está a caminho de acolá; desce, se você está a caminho de nenhures.  É rua apropriada para quebrar silêncios. Quando falta assunto, é só dizer: "Rua da Bahia". Os assuntos voltam.  É rua densamente povoada pelo passado. Você diz: "Bar do Ponto". Todo o passado volta, e, junto com ele, voltam os fantasmas. A Rua da Bahia inventou Belo Horizonte. "Haja cidade", disse a Rua da Bahia em uma segunda-feira chuvosa, muito tediosa, sem nada para fazer, só com empadas nos mostruários e alguns udenistas de cachecol. E houve então a cidade. Do ponto de vista topográfico, a Rua da Bahia tem baixios, medianias e altanias. À meia-noite, não há vagas para poetas nas medianias, vagam anjos pelos baixios, sonham nas altanias os candidatos a governador. Do Bairro da Floresta, onde começa...

[QUASE NOITE. COM FRANCIS PONGE]

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[é quase noite. e as pitangas  tingem o leite que o céu  derrama  a oeste, ali onde a estrela  temporã  logo virá declamar  um poema  de francis ponge. o vapor de cachoeira  não navega  mais no mar.  o jardim protege  uma ninhada  de vogais. o rústico  graveto  aresta a página de uma avenca  que, quase noite, logo vai  declamar  um poema de francis ponge.  é quase noite ao sul do sul, vai  agora o sol, vem a lua, e o cheiro  do óleo diesel é o próprio  coração  do diabo a bater  na caldeira da fábrica.  a fábrica  não vai declamar  um poema de francis ponge. o corte no olho do cão andaluz.  o banquete dos mendigos  por entre  as espirais  do tabaco de buñuel. godard recorta o senso  comum  com as tesouras  de uma andorinha  perdida,  perdida e cega,  na quase noite.  a andorinha  logo declam...

[PAUL CELAN E O FIAPO DA ROUPA DE UM PEREGRINO]

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[ainda noite, mas já manhã  prenunciada, veio o texto.] [texto assim: fiapo  da roupa de um peregrino.] [lembrei-me então da carta  que paul celan  escreveu a hans bender  em 18 de maio  do ano de 1960:  "só mãos verdadeiras  escrevem um poema verdadeiro.  em princípio,  não vejo nenhuma diferença  entre um aperto  de mãos e um poema".] [e o texto veio assim: fiapo  da roupa de um peregrino.]  [não era ouro,  não era ourivesaria, nada  de texto-diamante à luz chegante  do dia: era fiapo.] [fiapo da roupa de um peregrino.] [com a delicadeza que se impôs  em hora tão inaugural no tempo,  tratei de laçar a lápis  esse indizível que jamais escreveremos.] [modo não há de escrever o fiapo  que se fez de texto na manhã  prenunciada.] [o fiapo é o indizível,  é o horizonte inalcançável, é isto  que nos ilude para a escrita  sempre sonhada e impossível.]

[EDMOND JABÈS: GENEROSIDADES DO SILÊNCIO]

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[o que perturba sem nenhum ruído, sem  algaravias, o livro perturbador e perturbante,  esse livro que por ele somos perdidamente atraídos  (são tão poucos, são contáveis nos dedos),  esse livro que nos retira o centro e nos lança  às espirais da própria perturbação, esse livro  talvez não seja um livro longo, imenso, oceânico,  mas um livro que, mesmo ao ter mil páginas,  é um livro de pequenas cápsulas, de pequenos grãos,  de pequenas ilhas.  mostro a k . e a q .  um dos livros de jabès. abrimos em conjunto  as suas páginas. lá estão as cápsulas, as frações  e as porções do fato perturbador e perturbante.  o que lemos nesse livro, livro que é a multiplicação  de tantos livros num pontilhismo de tantas ilhas  em um mapa sem nome, nos joga às margens  da cidade. a cidade então perde o centro, e, com ela,  passamos a habitantes do horizonte. o horizonte  sem margens. t...

[CARTA AO SENHOR PON, MUY ESTIMADO EDITOR]

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[Caro amigo Senhor Pon:  Envio-lhe, enfim, os originais com 250 páginas (por favor, não fique assustado com o tamanho) em espaço simples. Há uma mancha de sangue na página 89. Por favor, igualmente não se assuste. Foi um acidente com o dedo médio no momento em que fazia a última leitura. Eu nunca deveria, Senhor Pon, usar o canivete enquanto leio. Nunca. Mas sou — o Senhor bem sabe — muito repetitivo. Passarei por Lisboa em outubro, a caminho da Espanha. Estarei em Vigo até novembro. Vou com Lanna — há cinco anos que lhe prometi a viagem e agora não há mais como desistir. Levaremos também o gato — é o Lopes — que se encontra no oitavo capítulo do livro. Dedico-lhe, aliás, 33 páginas. Peço-lhe paciência durante a leitura do texto que se encontra entre as páginas 143 e 198. Paciência e benevolência. Não pela qualidade (seja duro, Senhor Pon, não poupe nada em sua avaliação), mas pelo tema que ali descrevo — o tema do assassinato. Confesso-lhe: fui testemunha daquele crime. ...

[O FIO E O TIGRE AZUL]

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[era só um fio.  começava na ponta leste e vinha como se serpente até a ponta oeste e prosseguia mais e mais como se desejasse não ter fim jamais.  era só um fio na paisagem que a cidade  expunha  ao ocaso, luzes  trêmulas de postes como se fantasmas, mulheres  que puxavam os filhos aos seios para protegê-los  do tigre azul. o fio único desafiava  os tratados  de filosofia,  os estudos de ciência, ameaçava as deidades e divindades, era um fio  que começava na ponta leste e vinha como se serpente  até  a ponta oeste, e prosseguia,  mais  e mais  ele prosseguia,  um fio  desejante  de não ter jamais um fim atravessava a cidade  em seu ocaso  triste,  de mulheres tristes, com filhos tristes, em pânico  com o tigre azul.]

[FAZIA NOITE, MAS ERA URSO]

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[fazia noite, mas era urso.  fazia  claro, mas era poço.  fazia doce, mas era vespa. fazia liso, mas era lâmpada.  ó, música sem som  da frase oblíqua. ó, mancha invisível  no mar seco. aqui vou eu: cavaleiro,  cavalo,  furo e faca  pela dobra da música.  da poesia, bani  os incensos.  da prosa, abri o capinzal na planície, soprei  dunas do deserto. aqui vou eu: camelo  e tuaregue,  adaga  e sangue, parede  e alvura  no sol de andaluzia. não venha comigo,  poeta imitante. não venha comigo,  lebre indignante. nômade, montanhoso  e litorâneo, trago  amêndoa no punho.  e componho: silêncio de john cage  dentro de um redemoinho.]

[BIBLIOTECA AURORA ARURÁ]

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Hoje farei a doação para um sebo de 300 ou 400 livros, pequena fração do acervo pessoal formado no passo a passo das décadas. A maior parte seguiu em 42 caixas há dois meses para a Biblioteca Aurora Arurá, na Bahia, minúscula, simples e graciosa edificação elevada no quintalzinho da moradia amarela de Massarandupió. Este será o último endereço desses livros que nos acompanharam em Belo Horizonte a cada mudança de casa pelos bairros Pampulha, Sion, Luxemburgo e Cruzeiro. Agora compõem a Aurora Arurá, nome que surgiu em um sonho numa madrugada de outubro de 1998, na praia de Búzios, no Rio de Janeiro, durante um diálogo imaginário  com o poeta Manoel de Barros.