Postagens

Mostrando postagens de 2025

[CERTA VEZ, NA CASA DOS CONTOS]

Imagem
Até o ventinho da tarde parecia áspero quando o casal entrou e escolheu uma mesa de canto, rente a uma das janelas que dava para a Rua Rio Grande do Norte.  Ele, brusco, acomodou o corpanzil na cadeira.  Ela, miúda, manteve a cabeça baixa e os óculos escuros ao se sentar. Vazia estava a Casa dos Contos naquela hora, razão para se ouvir com nitidez o silêncio que eles mantinham um de frente para o outro. O garçom, baixote, ruivo, tido como um talentoso plantador de orquídeas nas horas vagas, levou o cardápio. Ele, debruçado sobre o próprio mutismo, levantou a cabeça apenas, as mandíbulas muito contraídas, a cara que lembrava a cara de um pugilista em final de carreira. O ventinho da tarde, já áspero, agora parecia ter espinhos.  Afastado, enquanto aguardava algum aceno, o garçom viu com tédio as figuras dos dois como que de bronze ou como que talhadas na pedra. A silhueta do casal, imóvel, congelada, parecia recortes negros na contraluz da tarde. Nada pediram ao garçom no ...

[O PULSO DO ESCRITOR-QUE-NINGUÉM-LÊ]

Imagem
[pegamos no pulso esquerdo do escritor-que-ninguém-lê e não conseguimos perceber latejamentos ou fluxos de qualquer natureza.] [um de nós comentou que ele poderia estar morto.] [éramos três e retornávamos das derradeiras para a primeira página.] [o escritor-que-ninguém-lê estava dependurado no trapézio por uma corda que descia até bem rente ao picadeiro.] [o circo estava abandonado.] [de tempos em tempos, alguém relatava a presença de palhaços mortos: seus fantasmas muito fora de moda e tropeçantes.] [esses fantasmas não faziam mal a ninguém e até lembravam crianças desajeitadas.] [monos de pelagem desbotada, que a morte havia esquecido, vagavam para lá e para cá com os seus cajados.] [bandos de pessoas, residentes na vizinhança e acostumadas a histórias retilíneas, vinham manifestar e expressar interrogações diante da cena.] [tais gentes não conseguiam entender por que um escritor (escritor-que-ninguém-lê) dependurava-se por uma corda desde o tra...

[COM WANDER PIROLI, A CAMINHO DO BRUNSWICK]

Imagem
"E se o mundo, de repente, amanhecer sem hipocrisia?", perguntou Rubem Focs. "Sem hipocrisia mesmo: pequenas ou enormes, mínimas ou máximas, mortais ou teologais, hipocrisias da gula ou da crença, políticas ou ideológicas?" Focs veio de mansinho com essas elucubrações socráticas pela manhã de terça-feira. Descia pela Rua Alfenas, atravessaria o Vale do Anchieta, queria ir a pé ao Bairro São Pedro para visitar Tia Dolores. Tia Dolores, a que apreciava Chopin. Ainda de madrugada, Focs imaginou um mundo livre das hipocrisias. De algum país longínquo do sono e do sonho, a proposição filosófica brotou com a força de um broto de chuchu na cerca. A proposição enramava-se em galhos e braços, folhagens vigorosas de trepadeira herbácea.  E não conseguiu mais dormir. Levantou-se. "E se o mundo, de repente, amanhecer sem hipocrisia?", tornou a perguntar, baixinho, diante da janela que dava para a Rua Trifana, ali mesmo, bem perto de onde morou o mágico Muril...

[VAGALUMES, VAGALUMES, POR QUE APAGARAM AS SUAS LUZES?]

Imagem
[o furo de um verme na pele  da manhã  soçobra e aderna o barco  que o fantasma  de um mendigo desenhou nas muradas  de uma ponte, a ponte que vai do nada  para lugar  algum.]  [retenho desse instante o grito dentro  de um copo vazio.] [há um cristão  com o punhal encravado nas costas  de um anjo.] [o fundo das agulhas  recusou a passagem dos camelos, e o reino dos céus, com fila nos caixas,  foi tomado pelos banqueiros.] [a vaca engole os seus intestinos.] [ursos  comem os seus filhotes.] [e os vermes  furam e furam a pele das manhãs.]  [nada sabemos desse degrau que recebe  um passo  depois de outro passo.]   [trôpega  senhora, trôpego senhor,  trôpega  família que alisa os seus fuzis.]   [vão  atirar em mim, em você, já atiram  desde cedo no vulto que o espelho  emitiu de uma abstração desnuda.] [comemoram com os fuzis a retomada  da ordem.] ...

[OS CONSTRUTORES DO PESSIMISMO]

Imagem
[Bem cedo eles chegaram ao bairro para a construção do pessimismo. Era um grupo sortido, qual sacaria de armazém nos tempos da vida a granel. Doutores alguns, especialistas outros, ociosos uns, missionários outros. Gama de cérebros empenhados na difusão da vida turva. Alegria? Vade retro! A alegria eles a baniram para os exílios. Vinham em duplas, de quando em quando; e de quando em quando se organizavam em falange romana. Rua acima, rua abaixo, eles vinham. Chegavam ao bairro para a construção do pessimismo. Traziam salvo-conduto que lhes permitia entrar ou sair em nossas moradas, vigiar ou punir quem cometesse o pecado de ter esperança. Diziam-se herdeiros do direito divino. A um garoto da rua do meio, um deles ordenou que recolhesse a pandorga. A um velho na praça, outro determinou que não tagarelasse com as flores. Dona Marildes ficou proibida de fabricar sonhos para o comercinho de casa em casa, aqueles bolinhos de dorso luzidio pelo açúcar e a canela. Ao Senhor Jonas, ...

[GREGÓRIO DE MATOS E A VIOLA DE ARAME]

Imagem
[vai, gregório, tocar a sua viola de arame pelas ruelas da velha cidade. vai até a barra. vai ao rio vermelho. volte ao pelourinho e cante, cante e toque a sua viola de arame. o exílio para luanda está bem próximo. o governador câmara coutinho não aguenta mais os seus impropérios. mas cante, gregório, cante e toque a sua viola de arame. e já à beira da morte, no recife, depois de voltar de angola, cante e toque a sua viola de arame, cante a saudade que sente da salvador que o rei lhe proibiu. toque a sua viola de arame, gregório.]

[A FEIRA DO MUNDO DE LÁ]

Imagem
[João Serenus foi hoje com Franz Kafka à Feira dos Produtos Que Não Existem, situada em um galpão que também não existe, numa rua que não existe.  Encontraram latinhas de saudade, bigodes para bem-te-vis, sutiãs para mariposas, batons para as mulheres dos vaga-lumes, automóveis de bolso.  João Serenus adquiriu uma manivela para dar corda em relógio que marca suspiros; Franz Kafka levou para a varanda da Praia da Paciência uma lanterna de iluminar olho de gato. Naquela hora, Salvador emitia desde o mar do Rio Vermelho os avisos para que Serenus e Kafka não esperassem pelo barco das 11 horas.  Serenus e Kafka ficaram quietos, a postos para o barco das quatro da tarde. A Feira dos Produtos Que Não Existem parece ter sido uma invenção de Gregório de Matos para caçoar das gentes  proprietárias de solenidades. Gentes proprietárias de solenidades vivem em busca da ponta de um laço que jamais se encontra com a outra ponta. Dá muito tédio observar essas gentes proprietárias d...

[OS SABERES E OS DESSABERES]

Imagem
[ainda há pouco eu sabia,  mas o saber  esvaiu-se, areia  na peneira, matéria não mais apanhável, toda ao chão como se fungo, lodo,  água ferruginosa. ainda há pouco eu sabia,  eu disse,  e repito,  sabia,  mas o saber  que eu sabia  em vapor  se fez, um outro saber,  frágil, lerdo, manco, logo esse novo saber  apontou ali onde os saberes fazem morada, um novo saber  qual estranho,  qual bicho  sem nome.  tive de aceitá-lo, a um saber não se dá a recusa,  ele vem, puxamos a cadeira,  deixamos que seja novo conviva. olá, eu digo,  solto verbos  amigáveis,  sirvo-lhe o cálice, sirvo-lhe a prosa de uma frase sinuosa  das que honram  as amizades,  isto até que o destino dos saberes outra vez, em reprise, outra vez  o destino  leve o visitante,  mais um dia passa, outro ano,  outros saberes chegarão,  e outra vez vão ceder ...

[O HOMEM DOS FRACASSOS ACUMULADOS]

Imagem
[o homem dos fracassos  acumulados veio hoje à loja. comprou pregos,  alfinetes e um rolo de barbante. conversamos  um pouco, à porta, sobre temas diversos:  o tempo, as aranhas,  shakespeare, pacamãs.  praticamos também o silêncio entre as frases,  robustos silêncios que engordam as pausas,  esse tempo largo das elucubrações sem palavras,  só o cinema  em correria  louca lá onde o fundo, o fundo sem fundo de cada um,  os que somos viventes. o homem dos fracassos  acumulados pendia o embornal no ombro esquerdo,  os sapatos  eram os mesmos,  os de sempre, avariados sapatos que pareciam vindos  da guerra, ou  da última revolução  que não houve, aquela que brotou, deu pendão  e logo se apodreceu. "com esse vento, com certeza,  não chove",  ele disse, por fim.  "é vento que espalha nuvens", respondi. "ainda lê a história  do rei lear?",   ele q...

[O MATADOR DE POMBOS]

Imagem
[Pelo buraco da fechadura,  a senhora Rebeca Plath vigiava  quando o senhor Gonçalo  Samoa estava prestes  a deixar o quarto e descer  a escada em caracol  até o pomar, onde gastaria  quase toda a manhã  atirando em pombos.  Eram tiros e mais tiros.  Os pombos, que eram fartos  e se procriavam  como se coelhos, caíam  das árvores, dos muros,  dos rufos oxidados,  das platibandas.  Algumas aves  agonizam no chão  até que o senhor Gonçalo  Samoa lhes desse o benefício  de uma pisada de misericórdia. A senhora Rebeca Plath  era antiga funcionária  daquele casarão solitário  entre as montanhas do sul  e as montanhas do norte,  não muito distante  das margens  do rio Cruzador, serpenteante  curso d´água que seguia  de leste para oeste.  Teria uns 50 anos.  Vestia-se em tons  sempre escuros, poucas joias,  prendia os cabe...

[O BARCO E O LIVRO DOS PRESSÁGIOS]

Imagem
[o livro dos presságios,  aberto  em dia errado, anunciava  o barco  para a tarde, a horas tantas,  entre  o dia e a noite, e seria  um barco  iluminado,  traria tochas na proa,  e ele  embicaria porto adentro,  dois   marinheiros o conduziriam  ao cais,  ambos cegos, joão  era o nome de um, jarbas  era o nome de outro,  e as cordas  e os cordames,  os nós e os laços  dos velames  penderiam do mastro,  no convés o resto de peixes,  a tinta  azul que grafava o casco,   "ilusões  invictas"  era o nome desse barco  anunciado para a tarde,  isto conforme  o livro  dos presságios, livro  aberto  em dia errado,  pois previa para hoje  o que de fato seria ontem,  equívocos  de mãos  no desgoverno de um lapso,  mas eis que a tarde  apagava luzes,  mas eis  que a noite abria as port...

[VARIAÇÕES DE VIOLONCELO NA BOCA DA NOITE]

Imagem
[entre o lobo e o cão,  à boca da noite,  quando o lusco-fusco,  na hora da alma-de-gato,  quando o dia fecha o opúsculo,  às vésperas das noitecências, assim no momento em que os grilos, é a hora dos capotes, hora de dar à cabeça a boina, é quando a fervura da sopa, hora da meia-luz nas platibandas,  é quando o boi resmunga,  a hora dos meninos ao banho, é hora impropícia às agulhas, hora de não enxergar as letras, é a cor do burro fugido,  é a estreia dos gatos pardos, aos ninhos os passarinhos, cordas ões dos violoncelos,  ah, as torneiras metafísicas,  os ohs, os ahs e os uhs, o odre com o gigante dentro, é o vau do onde para o aonde, é a travessa da ponte-pênsil, que venha então a noite, o mundo é vinho, talvez conhaque, talvez um tango, sibila o silvo da serpente, a vida é sinuosidade, às favas com a poesia, é o assalto dos pirilampos, jardel-o-torna-viagem, essas almas originárias do minho, é e...

[OS MATADORES]

Imagem
[os matadores estão sentados à cabeceira e destrincham a carne com garfo e faca, ali são comandantes-em-chefe de tudo o que os cerca. acham que país, conceito de país, é aquele ovo cozido que eles polvilham com sal e pimenta branca, e que depois mastigam e ruminam, e arrotam, neles a protuberância abdominal avantaja-se mais e mais de gases, e eles arrotam, contorcem-se em flatulência, arrotam e ruminam, os matadores necessitam desse rito, as mãos que eles usam no ofício incessante do morticínio são mãos que transpiram e porejam sangue, são mãos sangrantes quando as levam à cabeça dos filhos, sujam a cabeça dos filhos com o sangue que carregam nessas mãos para lá e para cá pelo país que igualmente sangra. os matadores de mulheres, os matadores de pobres, pretos, índios, e de anjos, e de tudo o que é vivente, os matadores em milícias, os matadores em tanques, os matadores transnacionais e onipresentes onde haja vida, pois onde a vida insista em ser apenas vida lá estarão os matadores, es...

[OS BLOGUES LITERÁRIOS SÃO CAUSA PERDIDA; APRECIO AS CAUSAS PERDIDAS]

Imagem
[liguei o dia  com um chamamento. não chamei a luz, chamei o silêncio.] &&&&&& [envelhecer com as palavras. e remoçar-se com elas.] &&&&&& [em tonalidades irregulares, mosaicos com múltiplas tesselas, dou à escritura a sua mais bela paisagem, essa dança de calhaus de pedra, essas migalhas redistribuídas, lascas em combinação e liga.] &&&&&& [toda promessa é elástica: ora encolhe, ora espicha. espicha menos do que encolhe, some mais do que aparenta.] &&&&&& [palavras órfãs são palavras que perderam a música.] &&&&&& [pelo tamanho da letra eu meço o que é da ordem do grito ou da ordem do silêncio.] &&&&&& [as exigências do paladar devem ser as mesmas exigências do olho que lê.] &&&&&& [os blogues literários são causa perdida; eu aprecio as causas perdidas.] ...

[A ESTA HORA DA NOITE]

Imagem
[a esta hora da noite, não há quem possa conversar sobre poesia inglesa, ou sobre os hábitos de walter benjamin em paris, ou sobre a vida de augusto dos anjos em leopoldina, minas gerais. um amigo disse, no tempo em que os amigos conversavam a esta hora da noite: "o rosto dos escritores impregna-se do que escrevem, e as rugas são traços e textos em palimpsesto na carne do rosto". a esta hora da noite, o amigo que tal coisa disse não vive mais neste mundo, e há o silêncio, e há o rosto de textos nele impregnados, e há o buraco das conversas que já não acontecem a esta hora da noite. a esta hora da noite, não há quem possa conversar sobre o ativismo de grace paley, ou sobre a lata de atum que kerouac comia, antes de morrer, ou sobre o silêncio entre joyce e proust em certo banquete, sobre os livros que joubert jamais publicou ou sobre a infância de edmund jabès no cairo. a esta hora da noite, o telefone não toca para a leitura do conto recém-escrito, a bomba de nêutrons dizimou...

[DA SEPARAÇÃO ENTRE POEMA E POESIA]

Imagem
[foto de peter turnely] [penso na figura do poema: plâncton, âmbar, abelha, ou grãos de trigo, em pendões, ao vento. penso nessa figura que nada tem com a poesia. penso no organismo, no indivíduo, penso na ilha e não penso no continente. penso a figura de um tufo de algodão que rola, deriva, ao sopro de uma ventania. penso na figura em minudência ímpar, esses caroços do júbilo e do êxtase. penso nessa figura a que se denominou poema, já tarde demais quando a poesia era já forma adiposa, teia-aranha. penso na figura do que é menos, penso nos engenhos da partícula, o plâncton, o âmbar, o pólen, e não penso na forma-em-abundância, nos cargueiros sinistros oceânicos, não penso na forma que é discurso. agora é quase noite, e a poesia é esse bolero sob o poste: lacrimosa, pantagruélica, a gula pela gordura. agora é quase noite, e o poema é esse farelo de pão sobre a toalha, nele cabe uma galáxia, tão condensável é o átomo de sua anatomia.]

[A TELA ABERTA EM SEU VAZIO EM BRANCO]

Imagem
[com a tela aberta  em seu vazio em branco,  eis que surge um falso endecassílabo,  depois uma estrofe  inglesa  metro burniano,  igualmente falsa, pois  sem  tetrapodias iâmbicas,  sem diapodias iâmbicas,  lembrava  mais um haicai que cresceu mais  que o lago,  mais que o sapo de bashô  em seu salto dentro do círculo. aguardo outro acontecimento  nessa tela  em seu vazio em  branco,  um pixel   que seja em algum recanto,  mínimo  que seja  e que lembre um pirilampo,  mas vem um diambo  com seus dois  iambos, depois um falso dímetro,  pois manco  com um dos pés  em solavanco,  assim como eu próprio ando  pelo mundo.  ah um dispondeu  que confundiu as quatro  longas sílabas  e construiu um báquio, as breves  seguidas  por duas longas,  equívoco que a tela em seu vazio  branco atraiu...

[A NATUREZA DOS VENTOS]

Imagem
1. Um vento que vinha lá dos anos 1970 entrou na casa, fez redemoinho pelos cômodos, mas não saiu. Ficou em algum desvão, em algum recanto. 2. O velho estava na poltrona e não se cansava de examinar a palma da mão esquerda. As linhas. Os calos eternos. A vermelhidão nas juntas dos dedos. 3. O velho percebeu que o vento que entrara na casa vinha lá dos anos 1970. Sentiu na flor da pele a presença de um conhecido, pois cada rajada de vento traz com ela o espírito de sua época. 4. Assim o velho pensou e prosseguiu com a palma da mão esquerda aberta, com os dedos esticados, ali estava a linha do princípio e do fim, e a linha estranha, quase imperceptível, linha que talvez guardasse todos os enigmas. 5. Da estante, as lombadas de antigos livros pareciam olhar para o velho. Também os vinis empilhados perto de um vaso quase lhe acenavam: Joan Baez, Willie Nelson, Victor Jara, Sidney Miller. 6. Por dentro, em suas entranhas e vísceras, o velho revisitava lugares distantes, pessoas distantes, c...

[NATAL DE 1956]

Imagem
Meu pai morreu no Natal de 1956, aos 38 anos. Décadas mais tarde, induzido muito provavelmente por um ataque de soberba, imaginei que ele tinha combinado de morrer no mesmo dia, talvez com poucas horas de diferença, com Robert Walser, aos 78. Meu pai, morto no interior de Minas; Walser, estirado na neve em Herisau, na Suíça. Sim, foi mesmo soberba minha unir essas datas de mortes: a de um comerciante de secos e molhados, dono do Armazém Nossa Senhora das Graças, com a de um escritor que, assim que eu conhecia mais e mais a sua obra, mais ele se tornava inseparável, leitura frequente, motivo de visitação e revisitação contínua a seus livros. Não me lembro quase nada do meu pai. A não ser aqueles fiapos de imagens que uma criança de cinco anos pode captar em sua infância. E esses fiapos de imagens se misturam obviamente naquele território limítrofe entre sonho e vigília, entre o que é e o que não é, cenas borradas ou em dissolução até o nada de uma parede branca. Hoje tenho idade para se...

[MAROLAS DE LEMBRANÇAS]

Imagem
“Alonguem a história”, diz a voz esbanjadora. “Encurtem a história”, diz a voz sovina. Há histórias que cabem dentro de uma pílula. Há histórias que lembram uma barrica de araruta. Quem é esse que vai pela estrada com passinhos tão curtos e ainda leva um guarda-chuva sob o braço? E aqueloutro que vai pela praça com passadas tão largas, tão gulosas, tão vorazes? O primeiro pratica histórias curtas; o segundo exibe histórias latifundiárias. Ah, a literatura. Por falar em literatura, certa vez, numa das mesas do Pelicano e atendido pelo garçom cujo apelido era Jean-Pierre, eu disse para alguém-que-já-não-me-lembro-quem o seguinte pensamento de gente ociosa, sem ter o que fazer: “Posso estar equivocado, mas enquanto Jaime Prado Gouvêa vem de uma linhagem Fitzgerald, Luiz Vilela vem de uma linhagem Hemingway”. Não sei o que respondeu aquele alguém-que-já-não-me-lembro-quem. E o mais provável é que a conversa tenha morrido ali mesmo, sem choro nem velas, nas espumas dos chopes. Belo Horizont...