"Eu conheci o escritor Paulinho Assunção em São Paulo, em janeiro ou fevereiro de 1971. Era então um sujeito magro de dar pena. Pele e ossos. Usava uma calça de tergal, quedes pretos muito usados, camisa de gola puída e sempre com um casaco de brim marrom. Todos os começos de noite ele chegava à Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, e dali era o último a sair.
Dizia-me estar copiando verso a verso, linha a linha, sílaba a sílaba, a poesia de João Cabral de Melo Neto. Tudo em um cadernão escolar que ele levava debaixo do braço até um ponto do ônibus na Avenida Rio Branco, de onde seguia para os altos da Vila Madalena, na Rua Madalena.
Apesar da vida difícil e da asma, possuía um entusiasmo invejável. Tinha vasculhado toda a seção de livros raros da biblioteca. Em sua mesa, na sala de consultas, avolumavam-se primeiras edições do modernismo, lia com voracidade Oswald e Mário, e soletrava em espanhol a obra de Lorca e Antonio Machado.
Lia sempre com um lápis na mão. Eu, que era então um apaixonado pelos livros de Pitigrilli, assustava-me com aquele tiroteio a esmo que ele praticava em suas leituras. Fartura de assuntos, fartura de autores. Parecia um presidiário que, solto, reencontrava a liberdade dentro de uma biblioteca. Ele tinha vindo do interior de Minas Gerais.
Sim, se bem me lembro, a vida dele não era fácil. Trabalhava em dois expedientes na Rua 15 de novembro, em uma empresa de cadastro. Passava o dia dentro de ônibus pelas ruas de São Paulo. Ele recebia um pacote de fichas, logo cedo, e deveria ir de endereço em endereço colhendo informações sobre clientes. De sul a norte, de leste a oeste da cidade. A obrigação era entrevistar cada pretendente a um crediário e fazer anotações sobre o local visitado. Em mínimos detalhes: cor da casa, tipo de construção, informações sobre bairro, rua, vizinhança. O nome dessa profissão esquisita era informante de cadastro.
Por essa época, ele andava como uma moça sergipana de nome Artemísia. Nos finais de semana, gostava de frequentar umas reuniões organizadas por um velho sindicalista do porto de Santos. Gente do Partido Comunista. O sindicalista era pai de uma vizinha da Vila Madalena chamada Mara, mulher do Nelson, ambos artesãos da Praça da República. Aquela feira hippie.
Acho que Nelson foi um dos grandes amigos de Paulinho Assunção naquele tempo. Tocavam violão e compunham. Foram até selecionados em um programa de calouros da Fundação Padre Anchieta, um programa dirigido pelo maestro Diogo Pacheco. Cantaram uma música cuja letra era uma colagem de frases do Nietzsche. "Melodia aleatória", eles diziam com o orgulho daquela onda vanguardista do período. As notas da escala tonal eram numeradas em pedaços de papel e depois fazia-se um sorteio às cegas. O resultado era imprevisível para a dor dos ouvidos mais conformados.
Um dia visitei Paulinho Assunção naquele barraco da Rua Madalena. Em uma mala de couro cru, ele guardava poemas escritos em folhas soltas, dobradas em pacotes e amarradas com barbante. Eu soube depois pelo Lips, um chapeiro de lanchonete na Rua Teodoro Sampaio, que esses pacotes depois foram queimados um a um no pequeno quintal que havia entre o barraco e a casa principal. Isto teria acontecido em agosto ou setembro. Provavelmente em setembro, quando o Exército matou o capitão Carlos Lamarca e Paulinho Assunção teria voltado para Minas. Não sei. A sergipana Artemísia divulgava outra história, que ele teria sido preso pelo delegado Fleury. Não sei. A experiência da literatura desfaz datas, desmonta fatos, turva o entendimento.
Nelson, o marido de Mara, conta por exemplo que Paulinho Assunção teria adotado outro nome, Vicente Pass ou Rubem Focs, e embarcado em um navio mercante para a Noruega. Sei apenas que tenho saudade de nossas conversas sobre vanguarda, sobre poesia e música de vanguarda, Maiakovski e Pierre Boulez, Stockhausen e poesia concreta. Conversas ali na porta da biblioteca, quando saímos para fumar. Ele puxava um cigarro do maço de Gauloise sem filtro comprado em uma banca de revistas da Praça da República. Baforava. Gesticulava. Um passarinho de tão magro. Eu fumava Continental.
Hoje estou muito velho. Minha memória é uma memória esburacada. Mas se você souber por onde anda o Paulinho Assunção diga-lhe que consegui escrever o livro sobre os rios brasileiros, uma sinfonia de poemas entrecruzados. São 400 páginas. Nunca será publicado."