[Rubem Focs, antes que a besta surgisse outra vez na porta do escritório, decidiu que a frase de abertura da história seria esta:
"Mês de junho: desce o rapaz de casaco marrom pelas escadarias da Biblioteca Mário de Andrade e entra na noite já fria de São Paulo, com um volume de A cartuxa de Parma debaixo do braço."
A história? Pelo que sabemos, teria sido assim:
"1) Que um rapaz, de 20 anos, no ano de 1971, na cidade de São Paulo.
2) Que o rapaz, muito magro e desnutrido, vindo havia poucos dias de Minas Gerais, usava um casaco marrom de brim naquela noite quando deixou a Biblioteca Mário de Andrade e caminhou em direção à Sete de Abril.
3) Que o rapaz levava debaixo do braço um volume de A cartuxa de Parma, de Stendhal.
4) Que o rapaz de casaco marrom chegou ali pelos lados da Marconi.
5) Que ali pelos lados da Marconi havia um boteco onde três recrutas do Exército brasileiro, fardados, tomavam cerveja encostados no balcão.
6) Que um dos recrutas, que era dentuço, viu o rapaz de casaco marrom e acenou para o rapaz de casaco marrom.
7) Que o aceno do recruta dentuço era um aceno de ordem.
8) Que o rapaz, muito magro e desnutrido, nascido em Minas Gerais, cumpriu a ordem e chegou até bem perto dos três recrutas.
9) Que o recruta dentuço fez cara de víbora ao pegar na gola e numa das mangas do casaco marrom do rapaz de casaco marrom.
10) Que o recruta dentuço perguntou ao rapaz onde ele havia conseguido aquele casaco.
11) Que o rapaz, com A cartuxa de Parma debaixo do braço, disse que ganhara o casaco de um amigo em Minas Gerais, que o casaco antes era verde, mas fora tingido de marrom por sua mãe para que ele pudesse enfrentar o frio de São Paulo.
12) Que a cara de víbora do recruta dentuço, que segurava o copo de cerveja até quase perto do nariz do rapaz de casaco marrom, ficou cara de víbora cascavel.
13) Que outro dos três recrutas, o ruivo, tinha os dois olhos que eram olhos de fogo e disse ao rapaz que aquele casaco pertencia às Forças Armadas da República Federativa do Brasil.
14) Que o terceiro recruta, que era mulato e o mais alto deles, fez o rapaz de casaco marrom tirar o casaco.
15) Que o recruta mulato tomou o casaco do rapaz.
16) Que o recruta dentuço fez o rapaz agora sem casaco se ajoelhar na porta do boteco.
17) Que o recruta ruivo ordenou que o rapaz sem casaco cantasse o Hino Nacional ajoelhado na porta do boteco.
18) Que o recruta mulato pediu no balcão um copo inteiro de cachaça e obrigou o rapaz sem casaco, magro e desnutrido, a virar o copo de um gole só.
19) Que o recruta dentuço obrigou o rapaz sem casaco a virar mais um copo inteiro de cachaça e a cantar mais uma vez o Hino Nacional, sempre ajoelhado.
20) Que os três recrutas chamaram o rapaz sem casaco de terrorista, da "corja do Lamarca".
21) Que o rapaz sem casaco, pálido, quase verde, trêmulo e ajoelhado, começou a chorar.
22) Que o recruta mulato deu um tapa na orelha do rapaz sem casaco vindo de Minas Gerais para tentar a vida em São Paulo naquele ano de 1971.
23) Que o recruta ruivo deu outro tapa na orelha do rapaz sem casaco e disse que ele tinha dois minutos para desaparecer na noite de São Paulo.
24) Que o rapaz se levantou cambaleante e foi pela noite de São Paulo em direção à Sete de Abril.
25) Que, já longe, já quase na Barão de Itapetininga, com o volume de Stendhal debaixo do braço, o rapaz cambaleante e sem casaco ainda podia ouvir as risadas dos três recrutas naquele ano de 1971, na cidade de São Paulo, Brasil".]