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[O HOMEM DOS FRACASSOS ACUMULADOS]

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[o homem dos fracassos acumulados veio hoje à loja. comprou pregos, alfinetes e um rolo de barbante. conversamos um pouco, à porta, sobre temas diversos: o tempo, as aranhas,  shakespeare, pacamãs. praticamos também o silêncio entre as frases, robustos silêncios que engordam as pausas, esse tempo largo das elucubrações sem palavras, só o cinema em correria louca lá onde o fundo, o fundo sem fundo de cada um, os que somos viventes. o homem dos fracassos acumulados pendia o embornal no ombro esquerdo, os sapatos eram os mesmos, os de sempre, avariados sapatos que pareciam vindos da guerra, ou da última revolução que não houve, aquela que brotou, deu pendão e logo se apodreceu. "com esse vento, com certeza, não chove", ele disse, por fim. "é vento que espalha nuvens", respondi. "ainda lê a história do rei lear?",  ele quis saber. "de tempos em tempos, vou lá e repasso umas frases, em recreio", eu lhe disse. o homem dos fra...

[A LETRA DA NOITE]

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QUANDO o silêncio neste sexto andar do Prédio Verde for enfim incômodo ao ponto de se tornar insuportável, e por fim aquelas caras todas de espantalho entrarem aqui no 62, não creio que haja algo de tão especial para ser visto. Haverá um homem de cabeça para baixo e uma carta de adeus manuscrita. Uma carta com 19 linhas e meia e uma única palavra repetida duzentas e quarenta vezes. Uma carta há dois dias deixada ao lado de uma cama de casal, sobre a mesinha de cabeceira.     O SÉCULO acabou. É noite no mundo e aqui no 62. Mas tudo o que sinto é uma louca, famélica e perversa vontade de ver as reações daquelas caras todas de espantalho, vindas em bandos ou em hordas, homens, mulheres e crianças, todos sedentos, todos em busca da razão desse silêncio agressivo e incômodo, toda a legião deles em fila indiana porta adentro, uma multidão, seis andares de pessoas aqui na parte mais alta do bairro, no sopé da serra.   SEIS ANDARES de pessoas é gente em demasia. Meu pai...

[TEORIA DAS CONVERSAS]

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[a teoria em voga, enquanto  as pitangas  iam sendo mordidas,  e alguém punha inteira nos olhos a imagem do rio  que passava,  podia ser assim resumida: conversas amenas são adaptações recíprocas a um repertório  comum  entre as partes  conversantes. ocorre que um deles de repente passou a usar um alfinete, e o outro abriu um canivete, e logo foi puxado um manto turvo sobre o rio, e logo houve o apodrecimento das pitangas, até que a teoria, tão promissora, foi-se para o avesso, criou-se guerra de palavras e gestos, e a esperança rastejou em agonia pelo assoalho.]

[DECÁLOGO PARA A ARTE DO CONTO, EM DIÁLOGO COM O DECÁLOGO DE JULIO RAMÓN RIBEYRO]

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1.Pode um conto não contar uma história. Mesmo assim a história estará sendo contada. Por exemplo: a história do rosto do leitor que lê um conto que não conta uma história. 2.A história em um conto pode estar na borda, no limite, na sangria: quase saindo do conto. Se o contista for esperto, a história que fica nas beiras do conto pode ganhar os olhos do leitor. 3.Quando um conto vai além do tempo que se consome para tomar meia garrafa de cerveja, calmamente, sem goles longos, muito provavelmente esse conto já não quer ser conto, embora não seja ainda uma novela. 4.Se porventura o conto possuir uma história, essa história deve ser assemelhada com os olhos de uma mulher em estado de paixão. É um redemoinho que suga, traga, puxa, consome irremediavelmente os olhos do leitor. Se nada disso ocorrer, é bem capaz que o conto e a história que porventura possuir o conto sejam nada mais que uma pedra de gelo, em derretimento. 5.A partitura por onde navega o conto deve ser hábi...

[O CORAÇÃO DE BILLY THE KID]

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1. No quilômetro 729, numa curva, pouco antes do Povoado das Lacrimosas, você vai ver cinco árvores.  2. São cinco jacarandás.  3. O terceiro é o mais velho, e é ali, um pouco à direita, onde há um marco de pedra, que está enterrado o coração de Billy the Kid.  4. Foi por amor.  5. Por um raio de muitas léguas, em qualquer birosca de beira de estrada, você vai ouvir a história.  6. O nome dela seria Orcanda, Orlanda, Ordália, Olinda — tantos nomes de boca em boca para referências a uma só pessoa.  7. Mais correto seria Ordália, filha de Josué e Mercês, Ordalita para os mais íntimos.  8. O amor chegou com fogo baixo, cresceu com algumas labaredas, virou incêndio pela altura de um setembro — há quem fale em outubro.  9. Billy the Kid era motorista de uma Scania entre Uberlândia e Jaboticabal — arroz nas viagens de ida, cerâmica nas viagens de volta.  10. Ordalita sempre punha os seus vermelhos (batom, vestido e unhas) quan...

[NA RUA ALFENAS, UM HOMEM CHORA DEVAGAR E MANSO]

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[Usava boina e ostentava um par de mãos que mais se pareciam com mãos de urso. Ele veio pela Rua Alfenas, morro acima, ali pelos lados da Rua Cobre. As mãos dele tinham graxa de muitos séculos, e os sapatos eram muito assemelhados com certas canoas velhas. Ele veio, morro acima, para o encontro com Maria das Graças. Se me perguntarem a hora, eu direi: pouco mais da seis da tarde. Se me perguntarem o que eu via, eu direi: via um sujeito de boina e o seu par de mãos que mais se pareciam com mãos de urso. Não creio que aquelas mãos um dia tenham feito carinho, que tenham um dia provado das artes do afago.  Maria das Graças estava sentada no meio-fio. Era magra, mas nem tanto. Dois brincos, dos de argola, aciganados, pendiam quase roçando a gola de sua blusinha branca. Maria das Graças tinha ares de noiva. E o de boina, morro acima, com as suas mãos de urso. Muito devagar ele subia e já sabia, de longe, que Maria das Graças embelezava o meio-fio, embelezava o mundo, embelezava o fi...