TODO ESCRITOR É UM ESTRANGEIRO


(Depoimento publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais no primeiro semestre de 2004)

O rio que corre pela minha aldeia não é um rio. É um arroio, um riacho, um ribeiro, um córrego. E o nome dele é Confusão. Dizem as lendas — e as lendas são a face inventiva da  verdade — que  os  primeiros  povoadores  da  região  mineira  onde  se  acha  hoje  São Gotardo,  divididos  em  dois  grupos,  de  repente  se  perderam,  confundiram  caminhos e veredas, entraram por onde não deveriam ter entrado, foram quando deveriam ter voltado. Tenho,  assim,  nas  minhas  origens, na imagem desses viajantes  extraviados,  razões  e motivos topográficos, geográficos ou simbólicos para o jogo e o simulacro, para confundir as pistas e embaralhar os rumos. Tal como aqueles primeiros exploradores da região onde nasceu  a  minha  cidade,  aprendi  que  a  literatura, como eu a entendo,  se  alimenta  dos caminhos  embaralhados,  que  ela é um  jogo no  interior  do  idioma,  um  jogo  no  qual  o melhor lance (ou o mais prazeroso) é o perder-se, é estar onde não se previa, é andar como quem extravia. Diria mais: escrever, para mim, é sempre usar bússolas enlouquecidas. 

Nas  vésperas  dos  meus  53  anos,  vejo-me  estética  e  ideologicamente  um  escritor mínimo,  um  escritor  mínimo  no  corpo  de  um  homem  mínimo. Embora desde  os  vinte  e poucos eu sobreviva da  palavra — como repórter, redator, revisor  e tantos outros ofícios afins ou tangentes ao exercício da palavra —, exerço até hoje a minha escrita como aqueles primeiros exploradores topograficamente desmemoriados do antigo Arraial da Confusão, lá onde os altiplanos do cerrado mineiro, de repente, de modo abrupto, formam um vale, um corte, uma incisão na  geografia. Volto então a  insistir: para mim, escrever é  se perder  e entendo o escritor como um estrangeiro e a literatura como um estado de estrangeiridade. Digo mais: os pés humanos são também  escreventes  e  andar  é  igualmente  um  modo  de escrever. Daí eu não encontrar diferenças de princípio entre o transeunte a pé no corpo das cidades e o escritor no seu espaço íntimo. 

Nada tem a ver o ato de escrever com aquele propalado clichê de que escrever é um ato  solitário.  Escrever,  na  verdade, é  talvez  o  mais  íntimo dos  atos,  mas nada  tem de solitário. O ato de escrever, pelo menos como eu o entendo, é o momento da mais profunda e  avassaladora  conexão  com o  mundo. É  a  intimidade  não  isolada,  é  a  íntima  porção  de tempo contagiada pelas coisas do mundo. Nos arredores e nas margens  de uma folha em branco de papel, tudo o que entendemos por mundo vem participar do ato de escrever. Ali acontece a íntima comunhão — e, aqui, destituo da palavra comunhão qualquer resquício de  religiosidade.  É,  talvez,  aquela  comunhão  implícita  no  trecho  de  uma  carta  de  Paul Celan a Hans Bender, quando o poeta diz: Je ne vois pas de différence de principe entre un poème et une poignée de main. Em outras palavras: é o poema (e eu diria: a escrita) posto no mesmo patamar de um aperto de mão. 

Os primeiros  livros — Todas as vezes em que me perguntam  quantos  livros  eu publiquei,  preciso  ir  aos  arquivos  e  contá-los.  São  poucos,  em  torno de  uma  dúzia, mas jamais tenho deles uma noção numérica. Eles se confundem com os livros a fazer, com os livros a caminho, com os livros abandonados ao meio, com  aqueles que  possuem apenas uma  única  frase  no  seu  corpo  ainda  feito  de  deserto. Os dois primeiros  — Cantigas  de amor & outras geografias (Poesia, 1980, Coordenadoria de Cultura de Minas Gerais) e A  sagrada  blasfêmia  dos  bares  (Poesia,  1981,  Editora  Civilização  Brasileira,  Rio  de Janeiro) — são  livros  que  hoje  me  atravessam  com  o  punhal  frio  do  desconforto,  do incômodo,  do  mal-estar.  Não  os  renego, pois de  nada  adiantaria  renegá-los,  mas  de  uma coisa  estou  certo: não os levaria  comigo  para  uma  ilha  deserta.  Até  percebo alguma qualidade no segundo, sobretudo naquilo que ele possui de uma “épica do lírico”, o espaço do  bar  como  pretexto  para  uma  jornada  de um dia  no  corpo  mais  vasto  dos  tempos ditatoriais. Sobretudo naquilo que ele traz como adesão à estética cabralina, certos recursos estilísticos como os vocábulos espelhados ou a opção pelos substantivos. Mas o livro teve uma edição tão precária, contém tantos erros de revisão e tantas gralhas que o tornam quase ilegível hoje em dia. 

Aquela  momentânea  adesão  à  estética  cabralina  e  certa  opção  pela  linguagem  em sua crua matéria, quase uma obsessão nesse período, vem de uma época, 1971, quando fui limpador  de  letras  em  São  Paulo.  Não  creio  que  essa  profissão  tenha  sido  um  dia catalogada, mas posso dizer, com todas as letras: aos vinte anos, eu fui limpador de letras na  cidade  de  São  Paulo.  Limpador  de  tipos  de  máquina  de  escrever  em  meu  primeiro emprego na Rua da Consolação, 41, bem diante da Biblioteca Mário de Andrade. Durante o dia,  limpava  tipos  de  máquina  de  escrever  numa  empresa  chamada  Organização  Ruf;  de noite, era o último a sair da biblioteca. Como não podia comprar livros, eu os copiava em cadernos e, assim, encontrei um modo de possuí-los, de sentir-lhes o gosto, de sentir deles a íntima  carnadura.  Copiei,  palavra  por  palavra,  tudo  o  que  encontrei  de  Cabral,  trechos  e trechos de Joyce, Lorca, Oswald e Mário, os Campos e as fontes onde beberam os Campos. Vasta e interminável listagem de um copista jovem e pobre, procedente do mais fundo de Minas Gerais,  um  sujeito  que,  de  repente, se  vê em trânsito  pela  mais  cosmopolita  das cidades brasileiras, e enfiado na Babel de uma biblioteca que jamais vira ou frequentara. Era ali que  eu  me  aturdia  diariamente  pelas  prateleiras  da  seção  de  livros  raros,  lá  onde encontrei  a primeira  edição daquele  Oswald de  Andrade que disse: “Aprendi com o meu filho de dez anos que a poesia é a descoberta das coisas que nunca vi”.   

Creio que há um momento na vida de um escritor em que é preciso caminhar sobre as águas. Minha caminhada eu a empreendi em 1983, quando escrevi Diário do mudo. Neste livro, escancarei as minhas dívidas (e também as minhas dúvidas), pus sobre a mesa as  faturas, os deves e os haveres, percorri de modo até  mesmo  autofágico  tudo  o  que  absorvera até  aquele momento. Mas se do ponto de vista poético o livro é uma caixa de ressonâncias, uma caixa de  ecos  dos  compósitos e  sedimentos  da  minha  formação,  o  que  o  motivou  vem  de  bem antes. O que o motivou foi um carro de madeira que eu via na minha infância, a engenhoca de um mudo pelas ruas de São Gotardo. Naquele carro, que crescia e crescia a cada vez que saía à rua, tudo funcionava mediante polias, roldanas, cordames e mancais. Era uma feérica representação do mundo do fazer. Aquele homem, destituído da voz, achara um meio de se expressar através de uma engenhoca na qual pequenos bonecos representavam lavadeiras, tipógrafos, serralheiros, boiadeiros ou simplesmente o povo em dia de festa. Assim que o carro  andava,  tudo  se  movia.  Por  isso  mesmo,  em  homenagem  a  tão  impressionantes mecanismos, costumo definir Diário do mudo como uma engenhoca de palavras.   

O livro recebeu  o  Prêmio  Nacional  Cidade  de  Belo  Horizonte  de 1983 e, no ano seguinte, foi publicado pela Editora  Comunicação. Costumo  dizer que um autor é  duas vezes premiado quando é escolhido por uma comissão julgadora que respeita e admira. Foi o  que  senti  quando  Laís Corrêa de  Araújo, Melânia  Silva  Aguiar  e João  Etienne  Filho escolheram o livro. E sentiria o mesmo, em 1998,  quando meu livro de contos Pequeno tratado sobre as ilusões saiu vencedor de outro concurso nacional, o  Prêmio  Minas  de  Cultura (Guimarães Rosa), selecionado por Luiz Vilela, Sônia Coutinho e Ana Cecília de Carvalho. 

Este  livro,  aliás,  teve  um  tortuoso  caminho.  Escrito  em  1985/86,  com  67  histórias,  ele permaneceu onze anos na gaveta, período em me dediquei integralmente ao jornalismo, boa parte como repórter da Agência Estado na sucursal de Belo Horizonte. Um pouco antes do concurso,  já  fora  do  jornal,  reduzi  o  livro  para  29  histórias  e  o  inscrevi com  aquela insegurança de estar entrando em um baile com uma roupa fora de época. Nada me garantia que aqueles  contos,  guardados  por  mais  de  uma  década,  pudessem  ainda  dizer  alguma coisa. Ao que parece, os contos disseram, mas o livro só seria publicado em 2003, não aqui, mas  em  Portugal,  pela  editora  Campo  das  Letras. Entre  escrevê-lo  e  publicá-lo — e publicá-lo em outro país — passaram-se 16 anos. 

Escrever,  fazer — A  frase que  direi  pode  ter  algo  de  pompa,  mas  não  a  resisto: gozosos são os caminhos da escrita. E gozosos são os modos de fazê-la, sem perder de vista a ideia de que esse fazer acontece naquelas frações de tempo do espaço íntimo. E fui fazer livros a mão, fazê-los como quem levanta uma casa no ar, fazê-los através de uma editora — a Edições 2 Luas —, que é também uma ficção, que é também uma personagem, como são personagens (e não heterônimos ou pseudônimos) os autores que assinam vários desses livros ou livretos, como Lucas Baldus, Vicente Gunz, João Serenus ou Rubem Focs. São personagens que escrevem aquilo que eu escreveria (ou não), tão fora de lugar quanto eu, tão tortos quanto eu. E fui fazer esses livros a mão, escrevê-los e diagramá-los, dobrá-los e cortá-los, costurá-los e colá-los, ilustrá-los e distribui-los em um lento, sinuoso e labiríntico processo  sempre  na  contracorrente  da  pressa,  a  contrapelo  da  produção  em  série. Um exemplar de cada vez, cinco de vez em quando, dez quando é possível. 

E publiquei Noite de palavras, Romances, Rostos, Escreventes, Saberes, Outras águas,  Namor —  Imaginações  para  Namorados,  Livro  dos  quereres,  A  flauta  e  o  automóvelKafka em Belo Horizonte e alguns de outros autores como Lucia Castello Branco, Maria Gabriela  Llansol, Ruth Silviano  Brandão, Roberto Correia  dos  Santos, Vera Casanova, Jaime Rocha, Eliane Marta Teixeira Lopes e Ângela Santoro. 

Para  mim, esses  livros, nascidos  da  artesania,  são  cartas,  cartas  em  busca de destinatários. Desconheço a equação secreta que desvenda o modo como um livro chega a um  leitor,  ignoro  quais  caminhos  ele  percorre,  mas,  ao  chamar  de  cartas  os  livretos  da Edições 2 Luas, dou-lhes, mais que um nome, uma condição, um estado. Talvez um dia eles sejam  reunidos  em  um  único  livro,  um  livro  único  porém  sempre  imperfeito,  como  é sempre imperfeita  a escrita, no seu dizer, no seu expressar. Sim, pois a imperfeição é da natureza da arte. Uma arte perfeita seria da ordem das divindades e as divindades, há muito, deram baixa das milícias humanas e se tornaram entidades contemplativas. Prefiro então a via  humana  do  fazer.  Fazer  como  faz  o  carpinteiro,  o  mestre  carapina,  o  jardineiro,  o amolador  de  tesouras  e  facas,  todas  essas  profissões  em  desuso  ou  extintas,  como  o limpador de letras que fui em São Paulo.  

De todos as maneiras, entre o meu primeiro livro e o próximo, entre os que estão na correnteza do mercado e os que viajam clandestinos pelos correios, feitos pela artesania da Edições 2 Luas, nada mudou em essência. O que aconteceu foi o livro que veio depois de outro livro, o livro que sempre há dentro de outro livro, um mesmo e sempre distinto livro. Afinal, o que há dentro de um escritor a não ser andaimes e estaleiros para a construção de livros? O que pode sair da autópsia de um escritor a não serem essas paisagens dos campos da Mancha, lá onde um Quixote, embriagado de livros, faz do mundo as suas páginas e de suas páginas o mundo — o seu e o mundo dos outros?      
  

Comentários

  1. Continuo a seguir-te Paulinho, com inveja e muita gratidão pelo que escreves.

    ResponderExcluir

Postar um comentário