[A ESTA HORA DA NOITE]


[a esta hora da noite,
não há quem possa conversar
sobre poesia inglesa,
ou sobre os hábitos
de walter benjamin em paris,
ou sobre a vida
de augusto dos anjos
em leopoldina, minas gerais.

um amigo disse, no tempo
em que os amigos
conversavam
a esta hora da noite:
"o rosto dos escritores
impregna-se do que escrevem,
e as rugas são traços e textos
em palimpsesto
na carne do rosto".

a esta hora da noite,
o amigo que tal coisa disse
não vive mais neste mundo,
e há o silêncio,
e há o rosto de textos
nele impregnados,
e há o buraco
das conversas
que já não acontecem
a esta hora da noite.

a esta hora da noite,
não há quem possa conversar
sobre o ativismo de grace paley,
ou sobre a lata
de atum que kerouac comia,
antes de morrer,
ou sobre o silêncio
entre joyce e proust
em certo banquete,
sobre os livros
que joubert jamais publicou
ou sobre a infância
de edmund jabès no cairo.

a esta hora da noite,
o telefone não toca
para a leitura do conto
recém-escrito, a bomba
de nêutrons dizimou
a esquina, veio a nuvem
de gafanhotos,
o vinho está seco no copo,
não há quem possa
conversar sobre o dilema
de um palíndromo,
ou sobre a casa
onde drummond
viveu em belo horizonte,
ali pelos lados
do bairro da floresta.

a esta hora da noite,
não há quem possa conversar
sobre dantas mota,
sobre os diários
de eduardo frieiro,
sobre os sonetos
de jorge de lima,
sobre a métrica de yeats
ou sobre as minúsculas
em cummings, não há sinais
de palavras intercambiantes
sobre um livro
que possa nascer
a respeito de barcos,
relógios, perfumes,
ruínas, trens
que jamais chegam,
trens que jamais partem.

a esta hora da noite,
as conversas
estão despovoadas de rosalía
de castro e antonio machado,
não há quem possa
referir-se a martim codax
e às ondas do mar de vigo,
a esta hora da noite
só há tiro e sirene, motor e uivo,
galope e abismo.]

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