[O PÉ]


Quando chegamos, o pé, sozinho, dentro de um muito usado sapato branco, já se encontrava sobre a mesa de número 86, vizinha à nossa, a 85. Parecia um pé cortado de véspera, parecia ainda guardar a tristeza dos pés que são cortados um pouco antes, algumas horas antes, aquela tristeza surgida de uma resignação, a tristeza de não mais serem parte de um todo, pé renegado, agora sem serventia, não mais caminhante, não mais flaneur pelas ruas de uma cidade. Era um pé esquerdo. Até que robusto. Ao lado dele, junto ao bico do sapato, havia um saleiro, um paliteiro, um amontoado de guardanapos, e uns restos de quem ali almoçara, a não menos triste feição de alguns secos grãos de arroz. Éramos três naquela hora. Vínhamos da parte sul da cidade, tínhamos sede, ao garçom invocamos os mais plenos vasilhames, os de bebida forte. E ficamos. Conversávamos, silenciávamos. Pausas e pontos. Pontos e pausas. Éramos três, depois éramos quatro, pois chegara pelo meio da tarde o Jonas Estivador. De tempos em tempos, olhávamos pelo canto dos olhos para o pé em sua condoída solidão, a mais condoída solidão que pode expressar um pé sobre a mesa, dentro de um sapato branco, cortado de véspera. Jonas Estivador era o de nós o que mais bebia, abruptos tragos, junto com goles de silêncio. Igual ao pé, Jonas Estivador sofria de tristeza das que exalam, das que soltam odores próprios da tristeza. Tão triste era, tão triste estava que poderia ser o pé na mesa ao lado, ambos como que exilados do mundo.

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