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[ENQUANTO VOCÊ LÊ UM LIVRO]

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Do nada, a frase pulou nos olhos do leitor. Ia o leitor a passos de cágado, muito assim-assim devagarinho em sua leitura, quando a frase, do nada, pulou nos olhos dele. Pulou mesmo. Assemelhou-se (a frase saltante) a uma lagartixa branca. Ou à língua de um sapo. Uma frase que pula ou salta nos olhos dos leitores é fenômeno raro. Ou melhor: inédito. Em sentido figurado, é claro que, havendo a sedução de parte a parte (do leitor pela frase e da frase para o leitor), há, sim, frases que tomam de assalto os olhos do leitor ou leitores que mergulham na frase como se em uma praia grega: pela beleza contida na frase, por exemplo. Ou por seu ritmo. Ou por seu mistério. Já o fenômeno em questão merece análise mais rigorosa. A frase que pulou era de uma novela narrada em primeira pessoa com cinco personagens (dois homens, duas mulheres e um grilo falante). Não menciono o nome do autor para não haver celeumas em um meio tão sujeito a intempéries. Ela possuía (ou possui) doze palavras. Estava (ou ...

[SOMOS TODOS PERSONAGENS?]

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Pela rua ou pela estrada afora, você vai sendo você mesmo ou vai sendo outro ou outra? A pergunta é oportuna. Ou pertinente. Isto porque há quem diga que todos nós somos nada mais nada menos do que personagens. Personagens de bons ou maus livros, de boas ou más histórias. Quem sabe se este senhor que você acabou de cumprimentar na descida da rua Nelson Gallo em direção à rua Oswaldo Cruz ninguém mais é do que o Rodolfo, personagem principal de um livro sobre colecionadores de libélulas? Rodolfo certamente olhou para a minha estampa, eu com o meu boné e a minha sacola de compras (nela está escrito “Bahia é uma palavra bonita”) e pensou: “Este é o Vasco, protagonista do livro As laranjas do visconde . E aquele baixote que sobe a rua? Ah, aquele é o Adauto Cortes, cujo monólogo no livro Batam os tambores, garoto tanto comoveu os leitores e leitoras adeptos dos livros pavimentados e sustentados pela escrita de si. Ricardo Pôncio, por sua vez, pelo fato de ser personagem de um livro ainda ...

[O JEITO DE OLHAR PARA O PRIMEIRO LIVRO]

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Em 1980, publiquei meu primeiro livro. Poesia, sim, senhor. Livro nascido de um projeto que levou, em 1979, cerca de 40 artistas ao Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, representantes de áreas como artes plásticas, cinema, música, dança, teatro e literatura. Na área de literatura, fomos Adão Ventura, Ronald Claver e eu. Essa trupe toda ficou no Vale em torno de 15 dias, se bem me lembro. Com muita pândega e pouco juízo. Dei ao meu livro o título um tanto brejeiro de Cantigas de amor & outras geografias. Poemas secos, áridos, estranhos, estrambóticos, embora um deles tenha sido musicado pelo compositor Melão sob o nome de Nas águas de Araçuaí. Melão e Lery Faria (parceiro que nos deixou tão cedo não faz muito tempo) voltaram da viagem com material que renderia um LP do mais alto nível, talvez o melhor trabalho gestado por esse projeto com patrocínio do governo do Estado, em plena ditadura. O governador de Minas era Francelino Pereira. Quarenta e cinco anos, portanto, me separam daqu...

[AS FERRAMENTAS DE ESCREVER]

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Meu convívio afetuoso e amantíssimo com máquinas de escrever (ainda possuo uma Lettera 82 muito graciosa, presente do meu filho David) começou em 1971. Recém-chegado de Minas, obtive o meu primeiro emprego em São Paulo na bizarra função de limpador de tipos. A empresa ficava na Consolação, bem diante da Biblioteca Mário de Andrade. Eu não apenas limpava os tipos com uma borracha moldável, mas, também, entregava à clientela as máquinas já reluzentes e lustradas. Supimpas. Quixotesco, flanava a pé com as máquinas acomodadas no peito pelo centro velho da cidade. Desse convívio inicial como faxineiro das borras de tinta acumuladas nos tipos, me transformei alguns anos depois em usuário, ao começar a minha vida de redator ali por 1975/76. As Olivettis e as Remingtons tornaram-se então minhas inseparáveis companhias. E as Remingtons de teclas verdes, paixão de tantos, seriam o patamar mais alto que os meus dedos (treinados em um curso de datilografia no bairro Calafate, em Belo Horizonte, al...

[É VERDADE QUE VOCÊ NÃO COMEÇOU O LIVRO?]

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A folha está vazia, a tela está em branco. Nelas não há nenhuma letra. Você não escreveu ainda um mísero signo ou sinal para poder anunciar em voz alta ou em voz baixa ou em voz alguma: “Comecei o livro”. O livro não foi começado, não há ali vestígio nem de rasuras. Ou de garatujas. Ou de um amontoado de palavras sem sentido ou ligação entre elas como álibi para que você diga: “Eis o começo”. O dia já avança a tropel de potro sem rédeas e nada surgiu nesse deserto que é uma folha vazia ou uma tela em branco. Esta cena acima é uma cena repetitiva, comum, sem novidade. Todos os que escrevem a conhecem. É cena íntima. Seus efeitos também são conhecidos: adiamento, desistência ou permanência imutável à espera de um jorro discursivo para apaziguar sua ansiedade. Quando vem o jorro da escrita, bimbalham os sinos. As cotovias revoam em espaço aberto. As papilas adormecidas acordam para sabores desconhecidos e o calo no pé torna-se agradável. Essas idiotias todas que se aglomeram em volta do e...

[KANT E A RAZÃO PURA NA TARDE DO BAIRRO]

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[kant tomou a razão pura entre as mãos, moldou-a, agregou à massa ingredientes próprios para a goma, sovou a razão pura com esmero e vigor, e então, quando a bolota já adquiria uma consistência elástica, ele esticou a razão pura sobre a mesa, esticou-a de um canto a outro daquela mesa onde as melancolias costumavam cantar boleros e tangos.]  [depois kant puxou a bolota da razão pura  de modo que, da longa tira emborrachada, bem esticada, pudesse soar um dó maior ensolarado pela tarde do bairro.] [e os meninos.] [e os meninos, toda a criançada de pés no chão e narizes líquidos, toda a meninada do bairro logo pôs caras e carinhas nas janelas.] [os meninos viram quando o dedicado kant dedilhava com o dedo mindinho a goma esticada da razão pura.] [os meninos viram aquilo.] [eles viram aquilo e acharam  muita graça.] [como é que o velho kant havia conseguido fabricar tal razão pura esticada sobre a mesa das melancolias?] [parecia até uma corda de viola, pois ...

[OS ESQUISITOS, COMO NÓS, À BEIRA DO DOURO]

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["Nenhum de nós recorda o texto da lei que obriga a recolher folhas secas", diz Julio Cortázar ali pela página 129 de A volta ao dia em oitenta mundos , quarta edição da Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, outubro de 1968. Ndalu, que é versado nesses temas um tanto em desuso, e é capaz de paradas súbitas na rua ao ter o olhar atraído para uma pedra, um besouro morto ou um papel com letrinhas manuscritas, propôs a Jorge um jogo enquanto caminhávamos pela manhã à beira do Douro.  Vínhamos de Dublin, fizemos uma parada de dois dias no Porto, mas o nosso destino era mesmo Havana, pois ali, naquele mês de agosto, participaríamos do XX Encontro dos Livros e Personagens Inexistentes. "O jogo consiste em ativar em nós o fervor para a esquisitice", explicou Ndalu.  Soprava do Douro um ventinho travesso e mefistofélico. Caminhávamos lentamente e descompromissados. E havia como que um ritmo frásico de lerdo e preguiçoso soneto em nossos pés. Em meu bolso, o bo...