[É VERDADE QUE VOCÊ NÃO COMEÇOU O LIVRO?]




A folha está vazia, a tela está em branco. Nelas não há nenhuma letra. Você não escreveu ainda um mísero signo ou sinal para poder anunciar em voz alta ou em voz baixa ou em voz alguma: “Comecei o livro”. O livro não foi começado, não há ali vestígio nem de rasuras. Ou de garatujas. Ou de um amontoado de palavras sem sentido ou ligação entre elas como álibi para que você diga: “Eis o começo”. O dia já avança a tropel de potro sem rédeas e nada surgiu nesse deserto que é uma folha vazia ou uma tela em branco.

Esta cena acima é uma cena repetitiva, comum, sem novidade. Todos os que escrevem a conhecem. É cena íntima. Seus efeitos também são conhecidos: adiamento, desistência ou permanência imutável à espera de um jorro discursivo para apaziguar sua ansiedade. Quando vem o jorro da escrita, bimbalham os sinos. As cotovias revoam em espaço aberto. As papilas adormecidas acordam para sabores desconhecidos e o calo no pé torna-se agradável. Essas idiotias todas que se aglomeram em volta do escritor quando em estado de escrita.

Há um terreno de pedregulhos nos fundos da casa. Nada cresce nele. E ninguém teve a iniciativa de limpá-lo, de abrir entre os pedregulhos algumas porções de terra para um quem sabe pé de alface. Ou uma touceira de capim-cidreira. Os pedregulhos estão ali talvez desde o começo do mundo. Antigos demais, e, reunidos, formam caras, gárgulas, carrancas em meio a lodo e abandono. Você olha pelo canto da janela e vê essa paisagem um tanto bizarra, um tanto monstruosa — e um tanto bonita. Sim, há beleza nesses arranjos que o tempo deu a coisas esquecidas.

O cachorro não aparece faz três dias. Saiu pelo buraco na cerca. A Senhora Adalgisa está inconformada. Adotou o cachorro ainda filhote, pôs nele o nome de Roberto e se afeiçoou ao animalzinho como se um filho ou neto. Faz perguntas aflitas na vizinhança, deixa a porta da sala entreaberta até altas horas da noite certa de que Roberto entrará e lhe mostrará os olhos de um marrom doce de leite. São muito melancólicas essas esperas da Senhora Adalgisa. A vida dela ficou uma folha vazia, a vida dela ficou uma tela em branco. Todas as forças bondosas do universo conspiram para a volta de Roberto, mas as forças bondosas do universo andam em frangalhos e desacreditadas.

O escritor deposita o lápis sobre a folha, calça os sapatos náuticos, sapatos de navegação em terra, e vai para a rua. Sem rumo e sem norte. Quem sabe se?

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