[LAURA I. E LAURA B., LEITORAS DE LIVROS]

Jardel Mondego, em seu Laura I. e Laura B., leitoras de livros (romance, 340 páginas, Editora Quasímodo, Belo Horizonte, 1987), abre a sua volumosa e caudalosa história com o seguinte e estranho prólogo, pois narrado no plural, como se o narrador estivesse em expedição com outros comparsas da vida romanesca pelo interior de Minas Gerais:

Perdiz-de-Dentro é um lugarejo de Minas Gerais onde vivem apenas 52 pessoas. Quarenta e nove jamais leram um livro; uma já viu um livro voando; as duas últimas (na verdade, duas mulheres) são leitoras em todo o tempo e em toda a vida.

Estivemos ontem em Perdiz-de-Dentro e foi um gosto encontrar essas duas leitoras, Laura I. e Laura B., e ter com elas a infindável conversa a respeito de livros.

Curiosamente, Laura I. e Laura B. só leem páginas ímpares, sob a alegação de que as páginas pares quase amiúde domam o que os livros possuem de selvagem, de agreste, de desgoverno.

Amores as duas tiveram, amores de morro abaixo e de morro acima. Eram quase sempre homens inquietos na geografia, uns eram bandoleiros, outros atravessadores de mares.

Eles apareciam no lugarejo de repente e, de repente, partiam. Iam com flor de beijos nos lábios e, ali, igualmente, deixavam pétalas de beijos nas duas mulheres.

E todos, todos eles, a seu modo, traziam um livro a tiracolo. 

Em Perdiz-de-Dentro os livros ficavam, e em Perdiz-de-Dentro compunham as estantes.

Pois ontem lá estivemos. E com as leitoras tratamos de livros. E bem achamos que Perdiz-de-Dentro é a súmula do mundo.

O que pode mais querer um escritor a não ser a fidelidade de duas leitoras, Laura I. e Laura B., leitoras de páginas ímpares, pois as pares de nada servem?

O paraíso de um escritor é a vila de Perdiz-de-Dentro.

[ESTOU FALANDO COM AS PAREDES]


[je parle aux murs
disse sílaba a sílaba 
o senhor jacques lacan. 
era um sábado furta-cor 
em paris, um sábado
de frialdade metálica, 
amêndoas saltavam dos olhos 
de cães negros,
de toda a parte 
surgiam os refugiados
com as mãos estendidas, 
e as chatas com meninos 
e meninas pintados a carvão
não paravam de navegar pelo sena.

je parle aux murs
disse sílaba a sílaba 
o senhor jacques lacan. 
e as paredes, altas, 
mistura de pedra
e aço, não eram as paredes 
da capela sainte-anne, 
mas paredes elevadas 
havia pouco tempo, 
operários a mando 
de senhores invisíveis 
ainda acionavam guindastes, 
eram paredes que durariam
mil anos, durariam 
às hecatombes, à bomba, 
aos terremotos e tsunamis. 

je parle aux murs
e a voz do senhor lacan 
reverberava sobre aquela superfície
agora pintada em tonalidade neutra, 
cinza, o acinzentado sem eco, 
assonante, a voz ia e morria, 
a voz era um grão 
em sua vaziez infecunda 
e estéril, a voz golpeava 
o aço e a pedra, a voz ofegava
em sua persistência 
contra as paredes
elevadas pelos operários a mando 
de senhores invisíveis. 
e os refugiados, os refugiados, 
os refugiados, os refugiados.

je parle aux murs
ele disse, e a voz era agora 
voz incapaz, voz não penetrante
no impenetrável 
que os operários 
a mando de senhores invisíveis 
ainda construíam, a voz 
não achava o furo, o orifício, 
a fresta, a ranhura, 
o desvão, a mínima rachadura. 
a voz só rebatia seu próprio
som irreprodutível: 
seco, surdo, silente.] 

[AS DOIDICES PEDINTES]

[todas as doidices pedintes estavam reunidas: e pediram à noite que não apagasse as luzes.]

[pediram que as pessoas não calassem os cachorros, os que latiam melancolias na ponte: eram saudades do dono que partira, foi de navio. e não disse adeus.]

[as doidices pedintes não eram das grandes, eram só fiapos de doidices, doidices humildes, descalças.]

[por isso, pediam o que era tão pouco.]

[havia doidice de cavaquinho e doidice de bolso furado.]

[e havia doidice de amores raspados no fundo do tacho.]

[nós, o que passávamos ao largo, ficamos cúmplices dessas doidices pedintes: nossos corações eram governados pela mansidão.]

[e elas pediam chuvinha, a tímida chuva apelidada molha-bobo.]

[e pediam doce de manga, biscoitos de argola, pimenta dedo de moça.]

[pedidos não havia, porém, para viagem a nova iorque, bagdá ou minsk. lugares vestidos de longe, vestidos de tanta lonjura, coisas para doidices grandes, descomunais em doiduras.]

[que país tão primevo e tão bom era esse o das doidices pedintes. até os lacans eram dos menores, até os freuds eram dos minúsculos.]

[e as pessoas liam os livros que não tinham páginas.]

[REPETIÇÕES INFINITAS]

[palavras são bichos espertos.
e as palavras mais espertas
são as que se repetem de boca
em boca, interminavelmente,
novena infinita e insistente. 

elas surgem repentinas
de algum livro ou fala, e logo
seduzem os falantes e escreventes
distraídos e pouco exigentes,
que passam então a dizê-las 
e a escrevê-las cegamente.]

[QUASE NOITE. COM FRANCIS PONGE]

[é quase noite. e as pitangas 
tingem o leite que o céu 
derrama a oeste, ali onde a estrela 
temporã logo virá declamar 
um poema de francis ponge.

o vapor de cachoeira 
não navega mais no mar. 
o jardim protege uma ninhada 
de vogais. o rústico graveto 
aresta a página de uma avenca 
que, quase noite, logo vai 
declamar um poema de francis ponge. 

é quase noite ao sul do sul, vai 
agora o sol, vem a lua, e o cheiro 
do óleo diesel é o próprio 
coração do diabo a bater 
na caldeira da fábrica. a fábrica 
não vai declamar 
um poema de francis ponge.

o corte no olho do cão andaluz. 
o banquete dos mendigos 
por entre as espirais 
do tabaco de buñuel.

godard recorta o senso 
comum com as tesouras 
de uma andorinha perdida, 
perdida e cega, 
na quase noite. a andorinha 
logo declamará 
um poema de francis ponge.

"fracassamos", diz o homem 
velho à beira de um canteiro. 
"fracassamos", dizem 
os leitores e as leitoras 
do não à beira 
das páginas mortas. e o gato, 
gato sem nome, subnutrido, 
triste, logo vai declamar 
um poema de francis ponge.]

[TUDO VIRA PÓ, TUDO SE DISSOLVE EM NADA]


Disseminados os textos, por este ou aquele meio, por esta ou aquela plataforma; dissipados os textos, mas pelo vento, pela ventania. É o vento hoje que se encarrega de dissipar os textos, de levá-los para aqui ou acolá até que já não mais existam, até que desapareçam. Os textos entram por um olho e saem pelo outro. As palavras caem como as frutas ou as folhas caem das árvores até que se apodreçam ao sol, à chuva, ao abandono. E no entanto há o exibicionismo pueril da pose com um livro nas mãos. A indústria usa e estimula tais poses, pois o livro, objeto quase sempre destinado depois de um tempo à reciclagem de papel, deve ser perecível, deve ter um prazo de validade para o bem e a saúde financeira da indústria. Lança-se um; lança-se outro. Logo a química de dissolver em ácido os livros lançados atuará para que novas matérias-primas estejam a postos para novos lançamentos e novas impressões. Disseminados os textos, dissipados os textos. Tudo vira pó, tudo se dissolve em nada.