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[TUDO NO MUNDO QUER SER LIDO]

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[tudo quer ser lido: a flor, o parafuso, o cisco.  a paisagem quer ser lida, e a janela, o fogo, o trovão.  tudo quer ser lido e expõe sua textuaria ao mundo.  o homem que vai, a mulher que vem, o menino que atravessa a zona de sombra de um edifício: todos querem ser lidos.  escreve-se com o corpo, escreve-se com o silêncio.  e tudo isto quer ser lido.  débora, a transtornada, quer ser lida.  jader, o furioso, quer ser lido.  papéis, células lexicais na luz, geometrias vocabulares, arranjos de letras inscritas na pele: tudo quer ser lido.  o lado certo e o lado avesso do objeto querem ser lidos.  o objeto "a" quer ser lido.  as paredes rebatidas pela voz para dentro do analista querem ser lidas, e própria voz, para dentro, posto que é voz ouvinte, quer ser lida.  já não é mais só o poema, o romance, o tratado, o ensaio. tudo quer ser lido.  adolfo, o pastor, quer ser lido.  hélia, a nov...

[TUDO NO MUNDO ESCREVE]

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[tudo no mundo escreve, até o chão com as suas camadas: tijolo, tábua, ladrilho, pena, cisco, fissura, fenda, rachadura. e a planta, que achou um ninho.] [tudo no mundo escreve: e o gato observa os experimentos da escrita, folhas, ramos secos, o tronco carbonizado, pedras, o rodo velho que agora deseja o mimetismo entre as coisas do chão. quem sabe virá uma borboleta para sacramentar a escrituraria?] [tudo no mundo escreve: e a linha, suspensa, etérea, é a frase que algum anjo geômetra inscreveu e escreveu sobre o texto de pedregulhos. o mar é o muro, e a madeira encravada no chão é um mastro. há um barco à deriva no canto esquerdo inferior. talvez seja o barco da memória.] [tudo no mundo escreve: até a espera, até o quase, até a perspectiva do que o paladar avista e os olhos comem. eis o de comer em suas alquimias do milho e do trigo. o prato escreve a oferenda. a mesa sustenta as frases desse texto que se expõe ao faminto. são muitos os parágrafos nas reentrâncias desse desej...

[A POESIA E A PROSA DUELAM NA TABERNA]

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["dizem os pasquins  que somos inimigas", falou devagar a prosa, o copo  sobre a mesa, aceso o cigarro rente à testa, a voz, a voz vinha de boca narrativa. "inimigas não somos, se bem, devo dizer, em algum momento senti ganas de matá-la", disse a poesia,  com meio riso cônico e irônico,  com outro meio riso fácil de notar que era um meio riso assim entre o sério e o adusto. "ah, também tive esses impulsos assassinos", confessou a prosa, o foco dos olhos sobre as próprias mãos agora em repouso sobre a mesa,  o cigarro quase no fim,  o fôlego para as frases longas. "seus deboches sempre  foram deboches de fraqueza",  respondeu a poesia, agora com um cálice de bebida forte,  se aguardente ou absinto,  as sobrancelhas franzidas, elípticos os lábios  com palavras bélicas. "em mim você também lançou  as setas envenenadas", falou a prosa,  os braços-parágrafos prontos para uma g...

[EM SALAMANCA, A TEORIA DO LIVREIRO SIETEFUEGOS]

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Foi em uma tarde brumosa e nevoenta da cidade de Salamanca, com mais exatidão na magnífica Calle de la Compañía, que Rubem Focs ouviu do livreiro Fernán Sietefuegos uma teoria deveras curiosa sobre a origem da filosofia. Segundo tais argumentos ditos em voz grave e baixa por Sietefuegos, foram os gatos que a inventaram, oferecendo-a na bandeja para os primeiros ou primeiríssimos filósofos de que a humanidade tem notícias. "O que é isto?", "Como foi que aconteceu?", "De onde veio?" ー todos sabemos que essas perguntas os gatos amiúde fazem como um hábito entranhado em sua natureza, enquanto cheiram o ar ou escutam o inaudível, enquanto fingem dormir, mas estão em vigília praticando exegese e hermenêutica de coisas secretas. Sietefuegos, com os seus enormes sapatos em lenta caminhada pela pedraria da rua, dono de um alfarrábio ali perto, na Calle de los Libreros, respirou fundo com um certo júbilo nos olhos. Parecia feliz com a história que ouvira de quem igu...

[EM TRIESTE, NO CAFÉ MOJORES]

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[Os camarões enlatados da marca Nogalitos (para quem não os conhece, são secos, miúdos e polvilhados com especiarias picantes) ainda podem ser degustados no Café Mojores, de Trieste, o mesmo aprazível e distinto estabelecimento já centenário onde o escritor Carlo Nubs costuma receber os amigos nas tardes de quarta-feira. Ali estive, no mês passado. Levava comigo algumas edições raras de manuais de pesca. Entre eles, cito um pequeno compêndio, não propriamente sobre a arte pesqueira, mas sobre a atitude que deve ter o pescador em locais de arriscado acesso, locais pouco frequentados, locais regidos pelo acaso, já que nunca sabemos se terminamos o dia com o embornal farto ou com a paciência rota. Carlo Nubs ficou comovido ao folhear essa edição que lhe caíra em mãos, pela primeira vez, fazia uns vinte anos. Ouvi-o dizer, de cor, frases inteiras sobre a arte da paciência ali contida, especialmente ali pela página 50, onde o autor do compêndio (omito o seu nome por motivos de segurança)...

[DEPOIMENTO DE NOEL BISCOLET, VULGO CONDE DE LAUTRELUNE]

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"Eu conheci o escritor Paulinho Assunção em São Paulo, em janeiro ou fevereiro de 1971. Era então um sujeito magro de dar pena. Pele e ossos. Usava uma calça de tergal, quedes pretos muito usados, camisa de gola puída e sempre com um casaco de brim marrom. Todos os começos de noite ele chegava à Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, e dali era o último a sair.  Dizia-me estar copiando verso a verso, linha a linha, sílaba a sílaba, a poesia de João Cabral de Melo Neto. Tudo em um cadernão escolar que ele levava debaixo do braço até um ponto do ônibus na Avenida Rio Branco, de onde seguia para os altos da Vila Madalena, na Rua Madalena. Apesar da vida difícil e da asma, possuía um entusiasmo invejável. Tinha vasculhado toda a seção de livros raros da biblioteca. Em sua mesa, na sala de consultas, avolumavam-se primeiras edições do modernismo, lia com voracidade Oswald e Mário, e soletrava em espanhol a obra de Lorca e Antonio Machado.  Lia sempre c...

[FILOSOFIAS DE DOMINGO]

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G. Deleuze quis tomar uma cerveja nos fundos do Mercado, mais adiante da loja de patos, um pouco antes da loja de peixes, entre os pimentões e as laranjas, entre a filosofia do ver e a filosofia do degustar. A cerveja veio e havia lentidões na manhã de domingo. G. Deleuze pôs o chapéu sobre o balcão, tinha limões nos bolsos do paletó, pediu a João Serenus descrições sobre a incidência da luz sobre os copos. Bebemos. Bebemos: um brinde para Espinoza, um brinde à fluidez dos afetos, um brinde à nova gravata de Franz Kafka, um brinde aos brincos de Cida La Lampe. Uns poetas passaram montados em um camelo, voou um bando de bailarinas sobre as nossas cabeças. Estávamos em estado de trincheira, trincheira para sorrir, trincheira para apreciar. Quase cresciam flores na ponta dos nossos dedos. Nenhum irado veio nos tirar da quietude.