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Mostrando postagens de 2025

[A FERA DA RUA DA BAHIA]

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[a fera foi vista ontem  na rua da bahia. fera ferrabrás  de linhagem fera:  garras,  bocarra, ira,  pelagem, retinas.  ninguém  ligou.  não houve espanto,  não houve  pânico,  ninguém ligou  para a polícia  borocoxô ou mesmo  para o governador  coió.  douta  e acadêmica vida  esta  que já não se espanta.  insípida e pernóstica vida esta  que já não eriça  os pelos da surpresa. foi-se então a fera,  fera ferrabrás de linhagem fera. foi-se pela cidade.  talvez  tomar sorvete.  talvez  comprar uns trajes novos lá onde drummond  fez um incêndio.]

[ESCRITORES ESTÁVEIS, ESCRITORES ITINERANTES]

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[bruce chatwin, em uma torre na toscana ,  fala sobre dois tipos de escritores: os estáveis, em casa, em suas bibliotecas, em seus quartos (flaubert, proust),  e os itinerantes, os rueiros, os sem pouso  (hemingway, gogol, melville), uns do lado dentro, outros do lado de fora, uns na sagrada torre, outros ao nível do chão, uns em domicílio, outros em trânsito. penso que é boa essa reflexão de chatwin, e é melhor porque sou da espécie híbrida, talvez anfíbia, ora estou no quieto  cômodo dessa muzambinha morada, ora  andarilho sem destino no ir pela cidade,  os próprios pés tornados escreventes,  o escrever a caminho, sempre a caminho. até que, páginas e mais páginas escritas nas folhas invisíveis, ao meu tugúrio retorno, e ali refaço o que talvez já não mereça ser refeito, pois a literatura não é nada, é só uma fração da estrada, é só um mísero intervalo do rumor orquestral que a vida ressoa: flor metálica de uma corda de banjo...

[O HOMEM DA SACOLA]

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[lá vai o paulinho assunção rua  muzambinho afora. vai às compras.  ele e a guerreira sacola vermelha. cantarola uma canção cossaca.  sem chapéu, boné ou boina  a lhe cobrir a telha. quanto mais  velho, mais bolchevique.  aos parvos, endereça bananas.  aos cínicos, põe língua-de-fora.  escreve com pés escreventes contos,  poemas, romances e até manuais  de explodir os palácios.]

[QUASE NOITE. COM FRANCIS PONGE]

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[é quase noite. e as pitangas  tingem o leite que o céu  derrama  a oeste, ali onde a estrela  temporã  logo virá declamar  um poema  de francis ponge. o vapor de cachoeira  não navega  mais no mar.  o jardim protege  uma ninhada  de vogais. o rústico  graveto  aresta a página de uma avenca  que, quase noite, logo vai  declamar  um poema de francis ponge.  é quase noite ao sul do sul, vai  agora o sol, vem a lua, e o cheiro  do óleo diesel é o próprio  coração  do diabo a bater  na caldeira da fábrica.  a fábrica  não vai declamar  um poema de francis ponge. o corte no olho do cão andaluz.  o banquete dos mendigos  por entre  as espirais  do tabaco de buñuel. godard recorta o senso  comum  com as tesouras  de uma andorinha  perdida,  perdida e cega,  na quase noite.  a andorinha  logo declam...

[OS CACHOS]

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[mas os sanhaços davam às laranjas a festa das duas da tarde. e tinha abelhas, as abelhas de antônio, e os assovios que antônia proferia para chamá-lo. demoraria muito para que a poesia aparecesse no fim da curva. éramos quase fiapos de gente. mas os sanhaços, as laranjas, as abelhas, os assovios de antônia para antônio davam bonitos cachos de humanidade.]

[CURSO DESGERAL DE LETRAS]

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[agora que sou moderno, você, instantâneo, pulou a casa e virou contemporâneo. domingo, estive no inferno com os lúciferes  todos vanguardeiros. segunda, embarquei  na aeronave do eterno.  terça, caí do cavalo e voltei a ser moderno. quarta, pirotécnico, fui aedo grego,  barqueiro croata, moleiro  sumério,  matemático fenício,  poeta persa. hoje, de novo estou moderno. às cinco em ponto da tarde, de praça em praça, assoviarei uma valsa e serei eterno. e você, instantâneo, mudou  os trajes  cutâneos,  pulou a casa e virou contemporâneo.]

[CERTAS TRAVESSIAS]

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[atravesso a sombra entre a porta e a samambaia, digo olá para a sombra, bom dia, dona sombra, o mar, eu digo, ei-lo no quadro, é uma aquarela,  vejo que a lombada de um livro de musil reluz entre o lápis e a esponja, presumo que vêm de lá o gato e a tartaruga, não publicarei mais livros, isto eu digo ao tonto  pêndulo  que na janela exibe-se  ao vento,  corto o alho em fatias,  ah, esse tempo  lúgubre,  aos 73 anos já posso exigir dos poemas apenas o miolo, a pepita,  desprezar cascalho e pedregulhos, ler somente o apetecível, fincar os olhos só nos punti luminosi .]