[QUATRO DA MANHÃ: PAUL VALÉRY COMEÇARÁ A ESCREVER]

[Íamos, Rubem Focs e eu, pela Rua dos Geômetras. Era por fim a noite calma e terna para os que vínhamos de perigoso embate com uns pistoleiros da Cidade Baixa. Focs levava sob o capote uma zero doze de fabricação alemã; eu mantinha no bolso do paletó a oito sete de procedência incerta. Deram-se os combates desde a hora vespertina. Eram nove contra dois. Vencemos. Aos andrajos, caminhávamos. Era vitória muito dolorida de muitas horas e tiroteios. E triste como todas as vitórias.

A Rua dos Geômetras era curta e plana e os sobradinhos de dois andares pontificavam com as suas fachadas delicadas àquela hora em que a cidade, deserta, parecia enroscar-se aos modos de um cão sem dono. Um ou outro surgia nas esquinas, gente talvez feita de bruma, sem consistência e substância de pessoa vivente. Uivavam ao longe talvez espécies caninas. Olhos de gatos apareciam em frações de minuto, aqui e ali, em algum desvão de garagem.

Por acidente, mais em fuga do que guiados por um mapa, caíramos na Rua dos Geômetras. O certo seria a Rua dos Caracóis, mais ao sul, limítrofe com o bairro dos Alfaiates. Mas estávamos ali na noite calma e terna e por ali seguiríamos até a Praça das Bolandeiras. De lá, cada um de nós tomaria o caminho de casa. A vitória doloria. Era decerto vitória muito triste. Aqueles tempos de guerra. Tempos abomináveis.

Foi quando passamos pelo número 33, diante do sobrado azul, três janelas no segundo andar, três portas no primeiro, com uns arabescos na fachada e gradis oxidados nos balcões minúsculos. Estava acesa a luz da janela do meio. Única luz na Rua dos Geômetras quando batiam as quatro horas da madrugada. Única luz como se um farol em alto-mar. Amarela, trêmula, mais tremular ainda quando o movimento de uma sombra parecia interpor-se entre o cômodo e a rua. Quem lá estivesse, não era fantasma, assim deduziu Focs em uma frase sem ponto final, frase reticensiosa nos tons baixos de alusão a mistérios. 

Paramos diante do sobrado e ali fizemos uma pausa. Quem lá estivesse, merecia esse intervalo em nossa caminhada. Focs olhou-me por um instante, refletiu sobre o que fazer e foi lentamente em direção à porta que nos parecia a porta principal. Havia identificação de moradores em uma placa esmaltada. Focs leu: Paul Valéry, 2º E. Dois outros nomes dividiam com Valéry a placa: Vernon Lassale e Jacobo Trévor. Mas era, sim, o poeta que se movimentava naqueles estertores da noite. Certamente, usava roupão e pantufas. E tinha diante dele mais um caderno aberto, a pena com certeza elevada para depois se abater sobre a folha para as notas aforismáticas de mais uma jornada de trabalho. 

A vitória doloria em nós. Era vitória triste daqueles tempos abomináveis. Mas seguimos caminho em passadas de intermitência, ofegantes, a ritmo muito cansado. Eram tempos abomináveis. Mas, ao nosso modo de homens rudes, saudamos em silêncio aquele poeta em sua laboriosa e grácil geometria.]

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