[O QUE NÃO VIA A ESCRITA]



[ele andava à deriva pela cidade como se as ruas fossem o oceano, e o corpo um barco de velas rotas. 

"são pássaros aqueles pontos?", perguntava a um e outro. 

"aquilo são as almas dos livros naquela ilha?", tornava a perguntar. 

fazia muito que a escrita navegava junto desse corpo que se fazia de barco, ora adernava para um lado, ora para outro, e nenhum exegeta à vista para dizer: "esqueça, senhor, os navios foram queimados". 

uma paisagem assim é ininteligível. 

a escrita o seguia, espuma nas águas, mas era impossível pegá-la como se um peixe, um dragão, uma sereia. 

um tempo houve em que ele desejou escrever a história dos homens a partir de um filósofo como giordano bruno. 

mas sossegou o desejo quando a mão que escrevia enrijeceu sem motivo, tornou-se mão de gelo, inútil. 

as histórias, como sabem, são incompatíveis com as geleiras. 

as histórias pedem chama, pavio, rastilho, incêndios.

por isso, com a escrita em espumas nas águas a lhe seguir, ele andava à deriva pela cidade como se as ruas fossem o oceano, e o corpo um barco de velas rotas. 

as pessoas, ao vê-lo, o apontavam assim: "o que não vê a escrita".]  

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