Postagens

[A FEIRA DO MUNDO DE LÁ]

Imagem
[João Serenus foi hoje com Franz Kafka à Feira dos Produtos Que Não Existem, situada em um galpão que também não existe, numa rua que não existe.  Encontraram latinhas de saudade, bigodes para bem-te-vis, sutiãs para mariposas, batons para as mulheres dos vaga-lumes, automóveis de bolso.  João Serenus adquiriu uma manivela para dar corda em relógio que marca suspiros; Franz Kafka levou para a varanda da Praia da Paciência uma lanterna de iluminar olho de gato. Naquela hora, Salvador emitia desde o mar do Rio Vermelho os avisos para que Serenus e Kafka não esperassem pelo barco das 11 horas.  Serenus e Kafka ficaram quietos, a postos para o barco das quatro da tarde. A Feira dos Produtos Que Não Existem parece ter sido uma invenção de Gregório de Matos para caçoar das gentes  proprietárias de solenidades. Gentes proprietárias de solenidades vivem em busca da ponta de um laço que jamais se encontra com a outra ponta. Dá muito tédio observar essas gentes proprietárias d...

[OS SABERES E OS DESSABERES]

Imagem
[ainda há pouco eu sabia,  mas o saber  esvaiu-se, areia  na peneira, matéria não mais apanhável, toda ao chão como se fungo, lodo,  água ferruginosa. ainda há pouco eu sabia,  eu disse,  e repito,  sabia,  mas o saber  que eu sabia  em vapor  se fez, um outro saber,  frágil, lerdo, manco, logo esse novo saber  apontou ali onde os saberes fazem morada, um novo saber  qual estranho,  qual bicho  sem nome.  tive de aceitá-lo, a um saber não se dá a recusa,  ele vem, puxamos a cadeira,  deixamos que seja novo conviva. olá, eu digo,  solto verbos  amigáveis,  sirvo-lhe o cálice, sirvo-lhe a prosa de uma frase sinuosa  das que honram  as amizades,  isto até que o destino dos saberes outra vez, em reprise, outra vez  o destino  leve o visitante,  mais um dia passa, outro ano,  outros saberes chegarão,  e outra vez vão ceder ...

[NA RUA ALFENAS, UM HOMEM CHORA DEVAGAR E MANSO]

Imagem
[Usava boina e ostentava um par  de mãos que mais se pareciam  mãos de urso. Ele veio  pela Rua Alfenas, morro  acima, ali pelos lados  da Rua Cobre. As mãos  dele tinham graxa  de muitos séculos,  e os sapatos  eram muito assemelhados  com certas canoas velhas.   Ele veio, morro acima,  para o encontro  com Maria das Graças.  Se me perguntarem a hora,  eu direi: pouco mais da seis  da tarde. Se me perguntarem  o que eu via, eu direi: via  um sujeito de boina e o seu par  de mãos que mais se pareciam  com mãos de urso.  E não creio que aquelas mãos  um dia tenham feito carinho,  que tenham um dia provado  das artes do afago.  Maria das Graças estava sentada  no meio-fio. Era magra,  mas nem tanto.  Dois brincos, dos de argola,  aciganados, pendiam quase  roçando a gola  de sua blusinha branca.  Maria das Graças tinha ares...

[O HOMEM DOS FRACASSOS ACUMULADOS]

Imagem
[o homem dos fracassos  acumulados veio hoje à loja. comprou pregos,  alfinetes e um rolo de barbante. conversamos  um pouco, à porta, sobre temas diversos:  o tempo, as aranhas,  shakespeare, pacamãs.  praticamos também o silêncio entre as frases,  robustos silêncios que engordam as pausas,  esse tempo largo das elucubrações sem palavras,  só o cinema  em correria  louca lá onde o fundo, o fundo sem fundo de cada um,  os que somos viventes. o homem dos fracassos  acumulados pendia o embornal no ombro esquerdo,  os sapatos  eram os mesmos,  os de sempre, avariados sapatos que pareciam vindos  da guerra, ou  da última revolução  que não houve, aquela que brotou, deu pendão  e logo se apodreceu. "com esse vento, com certeza,  não chove",  ele disse, por fim.  "é vento que espalha nuvens", respondi. "ainda lê a história  do rei lear?",   ele q...

[O MATADOR DE POMBOS]

Imagem
[Pelo buraco da fechadura,  a senhora Rebeca Plath vigiava  quando o senhor Gonçalo  Samoa estava prestes  a deixar o quarto e descer  a escada em caracol  até o pomar, onde gastaria  quase toda a manhã  atirando em pombos.  Eram tiros e mais tiros.  Os pombos, que eram fartos  e se procriavam  como se coelhos, caíam  das árvores, dos muros,  dos rufos oxidados,  das platibandas.  Algumas aves  agonizam no chão  até que o senhor Gonçalo  Samoa lhes desse o benefício  de uma pisada de misericórdia. A senhora Rebeca Plath  era antiga funcionária  daquele casarão solitário  entre as montanhas do sul  e as montanhas do norte,  não muito distante  das margens  do rio Cruzador, serpenteante  curso d´água que seguia  de leste para oeste.  Teria uns 50 anos.  Vestia-se em tons  sempre escuros, poucas joias,  prendia os cabe...

[O BARCO E O LIVRO DOS PRESSÁGIOS]

Imagem
[o livro dos presságios,  aberto  em dia errado, anunciava  o barco  para a tarde, a horas tantas,  entre  o dia e a noite, e seria  um barco  iluminado,  traria tochas na proa,  e ele  embicaria porto adentro,  dois   marinheiros o conduziriam  ao cais,  ambos cegos, joão  era o nome de um, jarbas  era o nome de outro,  e as cordas  e os cordames,  os nós e os laços  dos velames  penderiam do mastro,  no convés o resto de peixes,  a tinta  azul que grafava o casco,   "ilusões  invictas"  era o nome desse barco  anunciado para a tarde,  isto conforme  o livro  dos presságios, livro  aberto  em dia errado,  pois previa para hoje  o que de fato seria ontem,  equívocos  de mãos  no desgoverno de um lapso,  mas eis que a tarde  apagava luzes,  mas eis  que a noite abria as port...

[VARIAÇÕES DE VIOLONCELO NA BOCA DA NOITE]

Imagem
[entre o lobo e o cão,  à boca da noite,  quando o lusco-fusco,  na hora da alma-de-gato,  quando o dia fecha o opúsculo,  às vésperas das noitecências, assim no momento em que os grilos, é a hora dos capotes, hora de dar à cabeça a boina, é quando a fervura da sopa, hora da meia-luz nas platibandas,  é quando o boi resmunga,  a hora dos meninos ao banho, é hora impropícia às agulhas, hora de não enxergar as letras, é a cor do burro fugido,  é a estreia dos gatos pardos, aos ninhos os passarinhos, cordas ões dos violoncelos,  ah, as torneiras metafísicas,  os ohs, os ahs e os uhs, o odre com o gigante dentro, é o vau do onde para o aonde, é a travessa da ponte-pênsil, que venha então a noite, o mundo é vinho, talvez conhaque, talvez um tango, sibila o silvo da serpente, a vida é sinuosidade, às favas com a poesia, é o assalto dos pirilampos, jardel-o-torna-viagem, essas almas originárias do minho, é e...