[O HOMEM DOS FRACASSOS ACUMULADOS]

[o homem dos fracassos 
acumulados veio hoje
à loja. comprou pregos, 
alfinetes e um rolo
de barbante. conversamos 
um pouco, à porta,
sobre temas diversos: 
o tempo, as aranhas, 
shakespeare, pacamãs. 
praticamos também

o silêncio entre as frases, 
robustos silêncios
que engordam as pausas, 
esse tempo largo
das elucubrações sem palavras, 
só o cinema em correria 
louca lá onde o fundo, o fundo
sem fundo de cada um, 
os que somos viventes.

o homem dos fracassos 
acumulados pendia
o embornal no ombro esquerdo, 
os sapatos eram os mesmos, 
os de sempre, avariados
sapatos que pareciam vindos 
da guerra, ou da última revolução 
que não houve, aquela
que brotou, deu pendão 
e logo se apodreceu.

"com esse vento, com certeza, 
não chove", ele disse, por fim. 
"é vento que espalha nuvens",
respondi. "ainda lê a história 
do rei lear?",  ele quis saber. 
"de tempos em tempos, vou lá
e repasso umas frases, em recreio", 
eu lhe disse.

o homem dos fracassos 
acumulados adquirira
a tristeza resignada, a que fica 
em vasilhames dentro de nós, 
assim como as águas paradas
em um tambor no abandono, 
tristeza que produz
as metamorfoses espessas 
para as cores turvas.

para os lados da rua jacuí 
um canário solfejou
duas notas de aflição. 
"notícias do manoel lobato?",
ele perguntou. "nenhuma", 
eu disse. "e do libério
neves?", ele voltou a perguntar. 
"não tenho", eu falei. 
"aquele abacateiro morreu", 
ele comentou.

a voz era agora muito retilínea, 
voz horizontal, sem altos e baixos, 
sem notas para variações.
lembrou-se: precisava 
também de envelopes, meia
dúzia daqueles para cartas. 
fui à prateleira, escolhi
no monte os que lhe agradavam, 
trouxe-os.

pastoreamos, então, mais 
silêncios entre as frases,
olhamos para a rua, 
para colegiais em bandos 
no fim das aulas, 
para o vendedor de abacaxis 
já estacionado na conselheiro lafaiete.
mecânicos assoviavam 
na avenida petrolina.

o homem dos fracassos 
acumulados disse então
"já é hora". e partiu. 
margeou a calçada, devagar,
arrastava os velhos sapatos, 
o embornal pendia ao vento 
desde o ombro esquerdo, 
ia devagar, sim,
mas não viu, na travessia, 
a camionete de queijos.]

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[BIBLIOTECA AURORA ARURÁ]

[MÍDIA DO MEDO]