[AS DOIDICES PEDINTES]

[todas as doidices pedintes estavam reunidas: e pediram à noite que não apagasse as luzes.]

[pediram que as pessoas não calassem os cachorros, os que latiam melancolias na ponte: eram saudades do dono que partira, foi de navio. e não disse adeus.]

[as doidices pedintes não eram das grandes, eram só fiapos de doidices, doidices humildes, descalças.]

[por isso, pediam o que era tão pouco.]

[havia doidice de cavaquinho e doidice de bolso furado.]

[e havia doidice de amores raspados no fundo do tacho.]

[nós, o que passávamos ao largo, ficamos cúmplices dessas doidices pedintes: nossos corações eram governados pela mansidão.]

[e elas pediam chuvinha, a tímida chuva apelidada molha-bobo.]

[e pediam doce de manga, biscoitos de argola, pimenta dedo de moça.]

[pedidos não havia, porém, para viagem a nova iorque, bagdá ou minsk. lugares vestidos de longe, vestidos de tanta lonjura, coisas para doidices grandes, descomunais em doiduras.]

[que país tão primevo e tão bom era esse o das doidices pedintes. até os lacans eram dos menores, até os freuds eram dos minúsculos.]

[e as pessoas liam os livros que não tinham páginas.]

[REPETIÇÕES INFINITAS]

[palavras são bichos espertos.
e as palavras mais espertas
são as que se repetem de boca
em boca, interminavelmente,
novena infinita e insistente. 

elas surgem repentinas
de algum livro ou fala, e logo
seduzem os falantes e escreventes
distraídos e pouco exigentes,
que passam então a dizê-las 
e a escrevê-las cegamente.]

[QUASE NOITE. COM FRANCIS PONGE]

[é quase noite. e as pitangas 
tingem o leite que o céu 
derrama a oeste, ali onde a estrela 
temporã logo virá declamar 
um poema de francis ponge.

o vapor de cachoeira 
não navega mais no mar. 
o jardim protege uma ninhada 
de vogais. o rústico graveto 
aresta a página de uma avenca 
que, quase noite, logo vai 
declamar um poema de francis ponge. 

é quase noite ao sul do sul, vai 
agora o sol, vem a lua, e o cheiro 
do óleo diesel é o próprio 
coração do diabo a bater 
na caldeira da fábrica. a fábrica 
não vai declamar 
um poema de francis ponge.

o corte no olho do cão andaluz. 
o banquete dos mendigos 
por entre as espirais 
do tabaco de buñuel.

godard recorta o senso 
comum com as tesouras 
de uma andorinha perdida, 
perdida e cega, 
na quase noite. a andorinha 
logo declamará 
um poema de francis ponge.

"fracassamos", diz o homem 
velho à beira de um canteiro. 
"fracassamos", dizem 
os leitores e as leitoras 
do não à beira 
das páginas mortas. e o gato, 
gato sem nome, subnutrido, 
triste, logo vai declamar 
um poema de francis ponge.]

[TUDO VIRA PÓ, TUDO SE DISSOLVE EM NADA]


Disseminados os textos, por este ou aquele meio, por esta ou aquela plataforma; dissipados os textos, mas pelo vento, pela ventania. É o vento hoje que se encarrega de dissipar os textos, de levá-los para aqui ou acolá até que já não mais existam, até que desapareçam. Os textos entram por um olho e saem pelo outro. As palavras caem como as frutas ou as folhas caem das árvores até que se apodreçam ao sol, à chuva, ao abandono. E no entanto há o exibicionismo pueril da pose com um livro nas mãos. A indústria usa e estimula tais poses, pois o livro, objeto quase sempre destinado depois de um tempo à reciclagem de papel, deve ser perecível, deve ter um prazo de validade para o bem e a saúde financeira da indústria. Lança-se um; lança-se outro. Logo a química de dissolver em ácido os livros lançados atuará para que novas matérias-primas estejam a postos para novos lançamentos e novas impressões. Disseminados os textos, dissipados os textos. Tudo vira pó, tudo se dissolve em nada.

[BIBLIOTECA AURORA ARURÁ]


Hoje farei a doação para um sebo de 300 ou 400 livros, pequena fração do acervo pessoal formado no passo a passo das décadas. A maior parte seguiu em 42 caixas há dois meses para a Biblioteca Aurora Arurá, na Bahia, minúscula, simples e graciosa edificação elevada no quintalzinho da moradia amarela de Massarandupió. Este será o último endereço desses livros que nos acompanharam em Belo Horizonte a cada mudança de casa pelos bairros Pampulha, Sion, Luxemburgo e Cruzeiro. Agora compõem a Aurora Arurá, nome que surgiu em um sonho numa madrugada de outubro de 1998, na praia de Búzios, no Rio de Janeiro, durante um diálogo imaginário  com o poeta Manoel de Barros.