[COM WANDER PIROLI, A CAMINHO DO BRUNSWICK]
Focs veio de mansinho com essas elucubrações socráticas pela manhã de terça-feira. Descia pela Rua Alfenas, atravessaria o Vale do Anchieta, queria ir a pé ao Bairro São Pedro para visitar Tia Dolores. Tia Dolores, a que apreciava Chopin.
Ainda de madrugada, Focs imaginou um mundo livre das hipocrisias. De algum país longínquo do sono e do sonho, a proposição filosófica brotou com a força de um broto de chuchu na cerca. A proposição enramava-se em galhos e braços, folhagens vigorosas de trepadeira herbácea.
E não conseguiu mais dormir. Levantou-se. "E se o mundo, de repente, amanhecer sem hipocrisia?", tornou a perguntar, baixinho, diante da janela que dava para a Rua Trifana, ali mesmo, bem perto de onde morou o mágico Murilo Rubião.
Ouviu dois rojões para os lados da Rua Capelinha. Começou a se barbear. O relógio marcava 4h45. Lembrou de quando se encontrava com Wander Piroli perto da Rua Herval, e das vezes em que subiam juntos a Estêvão Pinto, viravam à direita na Muzambinho e chegavam às sinucas do Brunswick.
Focs sentiu falta de Piroli, daquela carona de italiano que ria sibilando, a camisa de mangas curtas para fora da calça, o cigarro na mão direita, os passinhos curtos, o corpo de boxeur, a leveza do homem bom.
Sete da manhã. E a Rua Alfenas, no trecho entre Afonso Pena e Cabo Verde, ainda rescendia a fumaça e abismo, era o bafo da noite a vazar pela porta da Sagitarius. Os funcionários começavam a limpeza da boate. Fantasmas remanescentes insistiam em ficar na rua. Gnomos exibiam ressaca e tristeza. Ninfas pediam táxi na avenida.
E a hipótese de um mundo, por fim, sem hipocrisia, replicava com insistência o passo a passo de Focs em direção ao vale. Era o Vale do Anchieta, era o caminho das águas. Chegaria à Grão-Mogol, tomaria a Montes Claros, e, então, cruzaria a Nossa Senhora do Carmo em direção ao sobradinho de Tia Dolores, a apreciadora de Chopin.
Mas, pouco a pouco, uma melancolia alastrou-se pelo coração de Focs e dividiu lugar com a proposição filosófica de um mundo sem hipocrisia. Rua Alfenas abaixo, ele girava essa hipótese de um lado a outro, do modo como se investiga um objeto por entre os dedos.
Não viu esperanças. A hipocrisia estava de tal modo enraizada no mundo que todas as esperanças para eliminá-la eram sumariamente repelidas. Dali a minutos, ouviria o piano de Chopin pela arcaica vitrola de Tia Dolores. E não tinha certeza se resistiria à dose de conhaque, em hora tão matinal, que a velha senhora lhe ofereceria.

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