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[OS MATADORES]

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[os matadores estão sentados à cabeceira e destrincham a carne com garfo e faca, ali são comandantes-em-chefe de tudo o que os cerca. acham que país, conceito de país, é aquele ovo cozido que eles polvilham com sal e pimenta branca, e que depois mastigam e ruminam, e arrotam, neles a protuberância abdominal avantaja-se mais e mais de gases, e eles arrotam, contorcem-se em flatulência, arrotam e ruminam, os matadores necessitam desse rito, as mãos que eles usam no ofício incessante do morticínio são mãos que transpiram e porejam sangue, são mãos sangrantes quando as levam à cabeça dos filhos, sujam a cabeça dos filhos com o sangue que carregam nessas mãos para lá e para cá pelo país que igualmente sangra. os matadores de mulheres, os matadores de pobres, pretos, índios, e de anjos, e de tudo o que é vivente, os matadores em milícias, os matadores em tanques, os matadores transnacionais e onipresentes onde haja vida, pois onde a vida insista em ser apenas vida lá estarão os matadores, es...

[OS BLOGUES LITERÁRIOS SÃO CAUSA PERDIDA; APRECIO AS CAUSAS PERDIDAS]

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[liguei o dia  com um chamamento. não chamei a luz, chamei o silêncio.] &&&&&& [envelhecer com as palavras. e remoçar-se com elas.] &&&&&& [em tonalidades irregulares, mosaicos com múltiplas tesselas, dou à escritura a sua mais bela paisagem, essa dança de calhaus de pedra, essas migalhas redistribuídas, lascas em combinação e liga.] &&&&&& [toda promessa é elástica: ora encolhe, ora espicha. espicha menos do que encolhe, some mais do que aparenta.] &&&&&& [palavras órfãs são palavras que perderam a música.] &&&&&& [pelo tamanho da letra eu meço o que é da ordem do grito ou da ordem do silêncio.] &&&&&& [as exigências do paladar devem ser as mesmas exigências do olho que lê.] &&&&&& [os blogues literários são causa perdida; eu aprecio as causas perdidas.] ...

[A ESTA HORA DA NOITE]

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[a esta hora da noite, não há quem possa conversar sobre poesia inglesa, ou sobre os hábitos de walter benjamin em paris, ou sobre a vida de augusto dos anjos em leopoldina, minas gerais. um amigo disse, no tempo em que os amigos conversavam a esta hora da noite: "o rosto dos escritores impregna-se do que escrevem, e as rugas são traços e textos em palimpsesto na carne do rosto". a esta hora da noite, o amigo que tal coisa disse não vive mais neste mundo, e há o silêncio, e há o rosto de textos nele impregnados, e há o buraco das conversas que já não acontecem a esta hora da noite. a esta hora da noite, não há quem possa conversar sobre o ativismo de grace paley, ou sobre a lata de atum que kerouac comia, antes de morrer, ou sobre o silêncio entre joyce e proust em certo banquete, sobre os livros que joubert jamais publicou ou sobre a infância de edmund jabès no cairo. a esta hora da noite, o telefone não toca para a leitura do conto recém-escrito, a bomba de nêutrons dizimou...

[DA SEPARAÇÃO ENTRE POEMA E POESIA]

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[foto de peter turnely] [penso na figura do poema: plâncton, âmbar, abelha, ou grãos de trigo, em pendões, ao vento. penso nessa figura que nada tem com a poesia. penso no organismo, no indivíduo, penso na ilha e não penso no continente. penso a figura de um tufo de algodão que rola, deriva, ao sopro de uma ventania. penso na figura em minudência ímpar, esses caroços do júbilo e do êxtase. penso nessa figura a que se denominou poema, já tarde demais quando a poesia era já forma adiposa, teia-aranha. penso na figura do que é menos, penso nos engenhos da partícula, o plâncton, o âmbar, o pólen, e não penso na forma-em-abundância, nos cargueiros sinistros oceânicos, não penso na forma que é discurso. agora é quase noite, e a poesia é esse bolero sob o poste: lacrimosa, pantagruélica, a gula pela gordura. agora é quase noite, e o poema é esse farelo de pão sobre a toalha, nele cabe uma galáxia, tão condensável é o átomo de sua anatomia.]

[A TELA ABERTA EM SEU VAZIO EM BRANCO]

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[com a tela aberta  em seu vazio em branco,  eis que surge um falso endecassílabo,  depois uma estrofe  inglesa  metro burniano,  igualmente falsa, pois  sem  tetrapodias iâmbicas,  sem diapodias iâmbicas,  lembrava  mais um haicai que cresceu mais  que o lago,  mais que o sapo de bashô  em seu salto dentro do círculo. aguardo outro acontecimento  nessa tela  em seu vazio em  branco,  um pixel   que seja em algum recanto,  mínimo  que seja  e que lembre um pirilampo,  mas vem um diambo  com seus dois  iambos, depois um falso dímetro,  pois manco  com um dos pés  em solavanco,  assim como eu próprio ando  pelo mundo.  ah um dispondeu  que confundiu as quatro  longas sílabas  e construiu um báquio, as breves  seguidas  por duas longas,  equívoco que a tela em seu vazio  branco atraiu...

[A NATUREZA DOS VENTOS]

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1. Um vento que vinha lá dos anos 1970 entrou na casa, fez redemoinho pelos cômodos, mas não saiu. Ficou em algum desvão, em algum recanto. 2. O velho estava na poltrona e não se cansava de examinar a palma da mão esquerda. As linhas. Os calos eternos. A vermelhidão nas juntas dos dedos. 3. O velho percebeu que o vento que entrara na casa vinha lá dos anos 1970. Sentiu na flor da pele a presença de um conhecido, pois cada rajada de vento traz com ela o espírito de sua época. 4. Assim o velho pensou e prosseguiu com a palma da mão esquerda aberta, com os dedos esticados, ali estava a linha do princípio e do fim, e a linha estranha, quase imperceptível, linha que talvez guardasse todos os enigmas. 5. Da estante, as lombadas de antigos livros pareciam olhar para o velho. Também os vinis empilhados perto de um vaso quase lhe acenavam: Joan Baez, Willie Nelson, Victor Jara, Sidney Miller. 6. Por dentro, em suas entranhas e vísceras, o velho revisitava lugares distantes, pessoas distantes, c...

[NATAL DE 1956]

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Meu pai morreu no Natal de 1956, aos 38 anos. Décadas mais tarde, induzido muito provavelmente por um ataque de soberba, imaginei que ele tinha combinado de morrer no mesmo dia, talvez com poucas horas de diferença, com Robert Walser, aos 78. Meu pai, morto no interior de Minas; Walser, estirado na neve em Herisau, na Suíça. Sim, foi mesmo soberba minha unir essas datas de mortes: a de um comerciante de secos e molhados, dono do Armazém Nossa Senhora das Graças, com a de um escritor que, assim que eu conhecia mais e mais a sua obra, mais ele se tornava inseparável, leitura frequente, motivo de visitação e revisitação contínua a seus livros. Não me lembro quase nada do meu pai. A não ser aqueles fiapos de imagens que uma criança de cinco anos pode captar em sua infância. E esses fiapos de imagens se misturam obviamente naquele território limítrofe entre sonho e vigília, entre o que é e o que não é, cenas borradas ou em dissolução até o nada de uma parede branca. Hoje tenho idade para se...