[A NATUREZA DOS VENTOS]
1. Um vento que vinha lá dos anos 1970 entrou na casa, fez redemoinho pelos cômodos, mas não saiu. Ficou em algum desvão, em algum recanto.
2. O velho estava na poltrona e não se cansava de examinar a palma da mão esquerda. As linhas. Os calos eternos. A vermelhidão nas juntas dos dedos.
3. O velho percebeu que o vento que entrara na casa vinha lá dos anos 1970. Sentiu na flor da pele a presença de um conhecido, pois cada rajada de vento traz com ela o espírito de sua época.
4. Assim o velho pensou e prosseguiu com a palma da mão esquerda aberta, com os dedos esticados, ali estava a linha do princípio e do fim, e a linha estranha, quase imperceptível, linha que talvez guardasse todos os enigmas.
5. Da estante, as lombadas de antigos livros pareciam olhar para o velho. Também os vinis empilhados perto de um vaso quase lhe acenavam: Joan Baez, Willie Nelson, Victor Jara, Sidney Miller.
6. Por dentro, em suas entranhas e vísceras, o velho revisitava lugares distantes, pessoas distantes, cheiros e sons distantes. E o que poderia ser um cemitério de tantos sepultamentos, na verdade estava vivo e pulsante na palma de sua mão esquerda.
7. Outros redemoinhos o vento que vinha lá dos anos 1970 fez de novo pela casa, entrou sob móveis, sacudiu cortinas, agitou as folhas de um caderno tão usado que parecia os sapatos de um andarilho.
8. Pouco a pouco, o velho cochilou e dormiu.
9. Não se sabe se acordou mais tarde ou nunca mais. O certo é que o vento que vinha lá dos anos 1970, depois de algum tempo, achou frestas e gretas para ir embora.
10. É da natureza dos ventos essa inquietude. Jamais ficam em um mesmo lugar.
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