[aonde vai a pena que soltou o pombo, de um lado
para aquele lado, viajeira pena de branco e ocre
e quase um cisco pela cidade afora.
alto lá, é o que eu digo. alto lá, senhor que vai,
senhora aí, senhora lá, eis que a pena
que soltou o pombo, de branco e ocre
pela cidade afora, eis que a pena é nada
e nada pelo mar de nada, alada nesga, alada
e cega, vai a pena de tão pequena nem vale
a pena assim olhá-la, observá-la, ei-la, ei-la
onde o céu acaba, ei-la bêbada nesta janela,
foi para o sul, perdeu-se louca dentro de um olho,
voltou, rodopiou, bailarina e menina na menina
de alguma retina, será serpentina de um momo
sem rumo e sem rima, teclas de um piano-fonema,
restos de santo ou anjo, pingos de um trema
no azul de um quase invisível poema.]
PAULINHO ASSUNÇÃO/blog
[COM FERVOR, DEDICO-ME AOS TEXTOS QUE NINGUÉM LERÁ]
[dedico-me,
com fervor,
aos textos
que ninguém lê.
ou jamais lerá.
passa o corvo de poe
com um penduricalho
no pescoço.
passa um navio
chora a cantautora de tango.
é frio o fio do punhal
no dorso do monstro,
é chuva
de ácido no espelho
chuto então a esperança
com o peito do pé descalço,
e, com fervor e paixão,
dedico-me
aos textos que ninguém lê,
que ninguém jamais lerá.]
aos textos
que ninguém lê.
ou jamais lerá.
passa o corvo de poe
com um penduricalho
no pescoço.
passa um navio
sem porto.
passa a imagem
de um monstro
pelo campo mais exíguo
do olho.
passa a imagem
de um monstro
pelo campo mais exíguo
do olho.
chora a cantautora de tango.
é frio o fio do punhal
no dorso do monstro,
é chuva
de ácido no espelho
d´água do poço.
chuto então a esperança
com o peito do pé descalço,
e, com fervor e paixão,
dedico-me
aos textos que ninguém lê,
que ninguém jamais lerá.]
[CINEMA DE PESSOAS, COISAS E BICHOS]
[«os livros escolhem os seus leitores», disse o velho.
a lua passava por entre as árvores e o navio desaparecia na linha do horizonte.
o vento dedilhava vogais nas venezianas.
rumores adquiriam sonoridades mais altas e já se assemelhavam a ruídos.
a madrugada ia a galope sem que ninguém pedisse para que ela suavizasse as passadas em ritmos mais lentos.
«os livros escolhem os seus leitores», disse o velho.
laranjas representavam laranjas na tela do mundo, e os cachorros continuavam cachorros apesar das metáforas desviantes.
duas dores, da espécie de dor sem nome e sem origem, vagavam pelos largos da praça.
dois medos, da espécie de medo indistinguível, rastejavam pelos musgos do muro.
«os livros escolhem os seus leitores», disse o velho do lado de fora da casa, o insone velho que lançava palavras ao vazio.]
o vento dedilhava vogais nas venezianas.
rumores adquiriam sonoridades mais altas e já se assemelhavam a ruídos.
a madrugada ia a galope sem que ninguém pedisse para que ela suavizasse as passadas em ritmos mais lentos.
«os livros escolhem os seus leitores», disse o velho.
laranjas representavam laranjas na tela do mundo, e os cachorros continuavam cachorros apesar das metáforas desviantes.
duas dores, da espécie de dor sem nome e sem origem, vagavam pelos largos da praça.
dois medos, da espécie de medo indistinguível, rastejavam pelos musgos do muro.
«os livros escolhem os seus leitores», disse o velho do lado de fora da casa, o insone velho que lançava palavras ao vazio.]
[CURSO DESGERAL DE LETRAS]
[agora que sou moderno,
você, instantâneo, pulou a casa
e virou contemporâneo.
domingo, estive no inferno
com os lúciferes
todos vanguardeiros.
segunda, embarquei
na aeronave do eterno.
terça, caí do cavalo
e voltei a ser moderno.
quarta, pirotécnico,
fui aedo grego,
barqueiro croata, moleiro
sumério, matemático fenício,
poeta persa.
hoje, de novo estou moderno.
às cinco em ponto da tarde,
de praça em praça, assoviarei
uma valsa e serei eterno.
e você, instantâneo, mudou
os trajes cutâneos,
você, instantâneo, pulou a casa
e virou contemporâneo.
domingo, estive no inferno
com os lúciferes
todos vanguardeiros.
segunda, embarquei
na aeronave do eterno.
terça, caí do cavalo
e voltei a ser moderno.
quarta, pirotécnico,
fui aedo grego,
barqueiro croata, moleiro
sumério, matemático fenício,
poeta persa.
hoje, de novo estou moderno.
às cinco em ponto da tarde,
de praça em praça, assoviarei
uma valsa e serei eterno.
e você, instantâneo, mudou
os trajes cutâneos,
pulou a casa
e virou contemporâneo.]
e virou contemporâneo.]
[LAURA I. E LAURA B., LEITORAS DE LIVROS]
Jardel Mondego, em seu Laura I. e Laura B., leitoras de livros (romance, 340 páginas, Editora Quasímodo, Belo Horizonte, 1987), abre a sua volumosa e caudalosa história com o seguinte e estranho prólogo, pois narrado no plural, como se o narrador estivesse em expedição com outros comparsas da vida romanesca pelo interior de Minas Gerais:
Perdiz-de-Dentro é um lugarejo de Minas Gerais onde vivem apenas 52 pessoas. Quarenta e nove jamais leram um livro; uma já viu um livro voando; as duas últimas (na verdade, duas mulheres) são leitoras em todo o tempo e em toda a vida.
Estivemos ontem em Perdiz-de-Dentro e foi um gosto encontrar essas duas leitoras, Laura I. e Laura B., e ter com elas a infindável conversa a respeito de livros.
Curiosamente, Laura I. e Laura B. só leem páginas ímpares, sob a alegação de que as páginas pares quase amiúde domam o que os livros possuem de selvagem, de agreste, de desgoverno.
Amores as duas tiveram, amores de morro abaixo e de morro acima. Eram quase sempre homens inquietos na geografia, uns eram bandoleiros, outros atravessadores de mares.
Eles apareciam no lugarejo de repente e, de repente, partiam. Iam com flor de beijos nos lábios e, ali, igualmente, deixavam pétalas de beijos nas duas mulheres.
E todos, todos eles, a seu modo, traziam um livro a tiracolo.
Em Perdiz-de-Dentro os livros ficavam, e em Perdiz-de-Dentro compunham as estantes.
Pois ontem lá estivemos. E com as leitoras tratamos de livros. E bem achamos que Perdiz-de-Dentro é a súmula do mundo.
O que pode mais querer um escritor a não ser a fidelidade de duas leitoras, Laura I. e Laura B., leitoras de páginas ímpares, pois as pares de nada servem?
O paraíso de um escritor é a vila de Perdiz-de-Dentro.
[ESTOU FALANDO COM AS PAREDES]
disse sílaba a sílaba
o senhor jacques lacan.
era um sábado furta-cor
em paris, um sábado
de frialdade metálica,
de frialdade metálica,
amêndoas saltavam dos olhos
de cães negros,
de toda a parte
de toda a parte
surgiam os refugiados
com as mãos estendidas,
com as mãos estendidas,
e as chatas com meninos
e meninas pintados a carvão
não paravam de navegar pelo sena.
je parle aux murs,
não paravam de navegar pelo sena.
je parle aux murs,
disse sílaba a sílaba
o senhor jacques lacan.
e as paredes, altas,
e as paredes, altas,
mistura de pedra
e aço, não eram as paredes
e aço, não eram as paredes
da capela sainte-anne,
mas paredes elevadas
havia pouco tempo,
havia pouco tempo,
operários a mando
de senhores invisíveis
de senhores invisíveis
ainda acionavam guindastes,
eram paredes que durariam
mil anos, durariam
mil anos, durariam
às hecatombes, à bomba,
aos terremotos e tsunamis.
je parle aux murs,
je parle aux murs,
e a voz do senhor lacan
reverberava sobre aquela superfície
agora pintada em tonalidade neutra,
cinza, o acinzentado sem eco,
agora pintada em tonalidade neutra,
cinza, o acinzentado sem eco,
assonante, a voz ia e morria,
a voz era um grão
em sua vaziez infecunda
e estéril, a voz golpeava
o aço e a pedra, a voz ofegava
em sua persistência
em sua persistência
contra as paredes
elevadas pelos operários a mando
de senhores invisíveis.
elevadas pelos operários a mando
de senhores invisíveis.
e os refugiados, os refugiados,
os refugiados, os refugiados.
je parle aux murs,
je parle aux murs,
ele disse, e a voz era agora
voz incapaz, voz não penetrante
no impenetrável que os operários
no impenetrável que os operários
a mando de senhores invisíveis
ainda construíam, a voz
não achava o furo, o orifício,
a fresta, a ranhura,
a fresta, a ranhura,
o desvão, a mínima rachadura.
a voz só rebatia seu próprio
som irreprodutível:
som irreprodutível:
seco, surdo, silente.]
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