[O HOMEM QUE SEGUIA ODETE PELAS RUAS DO CHIADO]
O
conto dizia de um romance cujo título era O homem que seguia Odete
pelas ruas do Chiado. O autor desse romance sobre o qual dizia o conto era
Vicente Pass, e sua publicação teria sido pela Editora Gaivota Navegante, de
Lisboa, em 2001. O romance ostentava pródigas 248 páginas, mas o conto, o conto
que dizia de um romance, não ia mais do que uma página e meia.
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Certas
proezas da memória costumam me emocionar. E este é um caso assim: lembrar-se
daquele conto que tratava de um romance cuja ação se passava pelas ruas do
Chiado.
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A
história do conto que tratava de um romance cujo título era O homem que seguia Odete pelas ruas do
Chiado ocorreu em certo dia de dezembro, por volta das 10 horas da manhã,
no agônico ano de 2000.
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Um
brasileiro, brasileiro comum, sem eira nem beira, ao subir calmamente em Lisboa
a Rua do Carmo, teve a visão, a vertigem, o curto-circuito ótico, o
transbordamento da vista, o terremoto nas pupilas.
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O
fato desencadeador desse hipnótico encantamento foi ter visto uma artista
plástica à sua frente, moça clara, de pele clara como a neve em seus primeiros
flocos. Ela usava uma saia de tons esverdeados, não muito longa nem muito
curta, saia à meia perna, e levava os cabelos amarrados em forma de coque.
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Mais
ainda: a moça usava brincos de pequenas argolas, e, sob o braço, carregava uma
tela. Tela ainda por pintar, tela ainda por preencher com as tintas do mínimo
estojo que ela trazia na outra mão.
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Este
homem, este brasileiro comum, sem eira nem beira, tomado ou endemoniado por
essa visão, decidiu seguir a moça, moça que ele logo chamou de Odete. “Odete”,
ele disse com voz interior. “Odete”, repetiu mais duas ou três vezes, com a voz
interior a ponto de explodir em silabários voadores e se materializar em voz
audível naquela manhã em Lisboa.
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E
ele seguiu essa Odete, Odete de pele clara, clara como os primeiros flocos de
neve que pudessem cair sobre as ruas do Chiado. E enquanto a seguia, enquanto
era irremediavelmente atraído por seus passos, apanhava no chão, sobre as
velhas pedras do bairro, as flores que a moça chamada Odete soltava de sua
pele, algo como escamas feitas de pétalas.
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Muito
poderia ser narrado sobre esse homem que seguiu Odete pelas ruas do Chiado em
um domingo do ano de 2000. Mas a história era um conto, não era um romance. Os
teóricos sempre dizem que um conto não pode desvendar de todo o enigma, no
caso, o enigma daquelas escamas feitas de pétalas que Odete soltava de sua pele
sobre as velhas pedras do Chiado.
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Há
um momento em que o autor deve pular fora do trem em movimento que é um conto.
É salto arriscado. Salto de alto risco, pois nada garante que as ficções sejam
inofensivas. Mas o leitor com certeza saberá distinguir entre a continuação da
história e a deserção do autor. Um homem segue Odete pelas ruas do Chiado. E o
autor, estirado à beira da linha férrea por onde passou o conto, nada mais
poderá dizer.
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