[MAROLAS DE LEMBRANÇAS]
“Alonguem a história”, diz a voz esbanjadora. “Encurtem a história”, diz a voz sovina. Há histórias que cabem dentro de uma pílula. Há histórias que lembram uma barrica de araruta. Quem é esse que vai pela estrada com passinhos tão curtos e ainda leva um guarda-chuva sob o braço? E aqueloutro que vai pela praça com passadas tão largas, tão gulosas, tão vorazes? O primeiro pratica histórias curtas; o segundo exibe histórias latifundiárias. Ah, a literatura.
Por falar em literatura, certa vez, numa das mesas do Pelicano e atendido pelo garçom cujo apelido era Jean-Pierre, eu disse para alguém-que-já-não-me-lembro-quem o seguinte pensamento de gente ociosa, sem ter o que fazer: “Posso estar equivocado, mas enquanto Jaime Prado Gouvêa vem de uma linhagem Fitzgerald, Luiz Vilela vem de uma linhagem Hemingway”. Não sei o que respondeu aquele alguém-que-já-não-me-lembro-quem. E o mais provável é que a conversa tenha morrido ali mesmo, sem choro nem velas, nas espumas dos chopes.
Belo Horizonte às vezes me envia essas marolas de lembranças.
Outro dia revivi a primeira vez que avistei Adão Ventura, bem antes de sermos amigos. Eu descia a Rio de Janeiro, pela calçada da direita, Adão subia, pelo lado esquerdo. Estava de macacão jeans, os cabelos bem crescidos. Deve ter sido na mesma época em que ele voltou da temporada americana. Guardei para sempre aquela cena do poeta tão alegre na tarde belo-horizontina, em conversações com duas outras pessoas. Era o tempo em que comprávamos o Suplemento Literário de Minas Gerais nas bancas do centro por alguns centavos.
Ah, o centro de Belo Horizonte em fases anteriores ao povoamento boêmio e etílico da Savassi.
A memória é dada a histórias largas, expansivas, desbravadoras. Já o esquecimento costuma preferir as histórias curtas que caminham em círculos dentro de um quarto. Quem era o poeta que chegava devagarinho, de mansinho na redação do Suplemento e lá deixava dois ou três poemas para serem avaliados. Entregava a pastinha para a Dona Maria Helena, depois saía com os mesmos pés de plumas e desaparecia. Os poemas eram ruins, muito ruins. Mas o poeta, de tempos em tempos, até sumir para sempre, voltava com outra pastinha. Ele talvez não fosse o autor e apenas estivesse ali como mensageiro. Ou não.
Tudo é literatura dentro daquele círculo não muito expandido do centro velho. Em cada rua, há uma história literária — larga ou curta. Dá para fazer um mapa, por exemplo, das livrarias que desapareceram. E das histórias ligadas a essas livrarias. Fernando Sabino lançou “O Grande mentecapto” na Livraria Eldorado, diante da Cantina do Lucas. Terminado o lançamento, formou-se uma mesa de velhos amigos na parte superior da Cantina: Fritz Teixeira de Salles, Murilo Rubião, Isaías Golgher e mais alguns outros. Tive a honra de estar em uma cadeira meio à deriva.
“Já leu o meu livro?”, Sabino me perguntou de supetão com um sorrisinho matreiro. Diante do meu espanto, ele continuou assim: “Sei, você está na página 33”. E agora riu de verdade. E veio com a história: Guimarães Rosa, quando autores que lhe enviavam livros pediam aflitos um comentário ou uma opinião, respondia que estava ainda na página 33. E quem pode dar uma opinião sobre um livro se está ainda na página 33, pergunto eu?
As histórias largas, as histórias curtas. E teve aquele episódio de travessia da madrugada quando eu e Luiz Vilela, com um violão a tiracolo, imitávamos uma dupla sertaneja em plena Praça 7 para espanto de quem ia para o trabalho. Fomos afugentados pelo guarda, que não apreciou a nossa cantoria. E esta é uma história curta, elíptica. Ponto.
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