[DIÁRIO DE VICENTE ALARAN. EM PARIS E OUTROS LUGARES]
[Abderrahmane Ualibo, o torna-viagem, o sem-pátria, dado a se camuflar em noites secretas no corpo de personagens, diz, em um de seus diários jamais publicados: "Escrever é apenas inseminação verbal".]
[Joseph Joubert (1754-1824), aquele que jamais teve um livro publicado em vida. Não será esta a mais fulgurante condição para um escritor hoje?]
[A vulgarização do fragmento. A vulgarização da "história curta". A vulgarização do aforismo. E, ao contrário, em outro extremo, o grande mito do livro imenso, do livro-rio, o lugar-comum do livro que "fica em pé".]
[À beira dos 73 anos, tempo de repetir Drummond: nenhum problema resolvido, sequer colocado. Mas a folha em branco, à espera do lápis, é o paraíso.]
[Aquela frase de Borges (algo irônica, algo sarcástica) de apoiar na Argentina um candidato certamente incapaz de vitória: "gosto das causas perdidas" (em versão livre, de memória). Pois a literatura talvez seja isto, hoje. E eu repito Borges: gosto das causas perdidas.]
[Desventurado mineiro velho em Paris: feito de ficções, envolto em ficções, preso às teias das ficções.]
[Muitas vezes penso (penso nisto cada vez mais amiúde): serei um homem feito de palavras, vindo do pó das palavras, a caminho do pó das palavras?]
[Fui hoje cedo ao cemitério de Montparnasse. Fiquei longos minutos diante do túmulo de Samuel Beckett.]
[Minha tentativa de escrever o capítulo 10 na manhã de hoje fracassou. Fui atraído pela movimentação do carro da limpeza pela minha rua. Distraí. Deixei o lápis sobre o caderno e fui caminhar.]
[Ontem, na Rue Pascal, entendi de fato o que era uma epifania (mas epifania pagã, terrena), ao ver o vulto de um Cortázar que não era Cortázar, mas um jornaleiro muito velho que entrava por um túnel do tempo.]
[Não poderei levar de Paris a Diamantina a encomenda do meu tio Onofre. Pediu-me ele um vidrinho com um pouco das águas do Sena. Certamente a companhia aérea não permitirá que eu transporte essa "porção de memória líquida", segunda a definição de um velho estudante do Caraça.]
[Vicente Alaran. Juliette sempre achou graça no meu sobrenome. Alaran. Alaran. Ela repete e ri. Juliette, que não é a Binoche, trabalha em um hotel da Rue Amelot, no Marais. É de Nice. Tentou a carreira de atriz. Não deu certo. Alaran, Alaran. Ela repete e ri. Alaran, eu lhe digo, é um alarido falado musicalmente.]
["Em um voo noturno da antiga Vasp, São Paulo-Bruxelas, classe econômica, dissimulado e espremido nas poltronas centrais com a mulher e os quatro filhos, o agente começava a missão que lhe manteria 12 anos na Europa e faria dele um dos homens mais importantes dos serviços secretos europeus." (Trecho do capítulo 9, não aproveitado por sua fraqueza estilística.)]
[O capítulo 17, fracassado, e rasgado, começava assim: "A Organização Petúnia Negra, de nome tão exótico, poderia ter saído de um livro de Roberto Drummond, não fosse a sua especialidade espionar alta funcionária governamental em Bruxelas, por meio do agente ...".]
[Achei, no meio de uma agenda, um provérbio (Zocco Chico Proverb) que copiei de um livro do qual já não me lembro, que diz (e dá calafrios pelo que diz): If you are my enemy / I kill you for money / If you are my friend / I kill you for nothing.]
[O livro era assim: capítulo um, favor voltar ao pré-capítulo.]
[Tive certa vez a arrogância de reclamar da falta de um hífen entre Jean e Paul no túmulo de Jean-Paul Sartre em Montparnasse.]
[No alto da serra da Paraúna. Quase dá para tocar o céu. Viajo segunda para o Brasil. Saudades da minha Diamantina. Um velho argumento para um roteiro jamais concluído, rascunhado em um cartão de embarque, parece-me hoje decididamente risível: "Mineiro em Paris, natural de Diamantina, torna-se agente secreto".]
[Edmond Jabès. Nas travessias de Paris, de metrô, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, suas notações interrompidas, suas notações-caminhantes, escritório móvel pelos subterrâneos da cidade. Por fim, a construção de uma obra em fragmentos circulares.]
[En el sur de la rosa se ha quedado un pájaro detenido. Lezama escreveu isto. Devagar, olho para o sul da rosa. Um sul rosal-rosalino em rosáceas. Mas não quero o pássaro preso. Solto-o.]
[Originário do que chamo de "barroco solar", em contraposição ao "barroco lunar" (o primeiro festivo, profano, báquico, aberto, leve, o outro circunspecto, sacro, pesado), talvez eu encontre na figura da vertigem a definição melhor para o prazer da leitura. Ler como se o texto representasse o salto do acrobata no circo. Sem rede para protegê-lo.]
[Jamais dei uma entrevista; penso que jamais darei uma entrevista. Não por arrogância, mas por temor. O temor de dar à resposta (e às respostas) a condição de pedra, de petrificação. Como um fervoroso do inconcluso, do inacabado, toda resposta (pelo próprio significado do termo resposta) seria vã tentativa de arremate ao que sempre é irrematável.]
[Ne frustra vixisse videar ("Não me deixe parecer ter vivido em vão"), teria dito o astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) a Johannes Kepler, pouco antes de morrer, ao que tudo indica, por envenenamento. Entre os feitos de Brahe, por 485 dias, ele observou detalhadamente a supernova que brilhou na constelação Cassiopeia em 1572, e publicou, mais tarde, em 1573, o relato dessa observação no livro De nova stella. Mas o conto, na minha opinião, deve começar de outro modo: pelas próteses que Brahe usava ao ter perdido uma parte do nariz em um duelo. Aí começa a literatura, penso eu aqui na beira do Sena, às vésperas de me despedir de Paris.]
[Sempre penso em quem seria e como era o Falso Geber, o alquimista medieval espanhol que primeiro descreveu o ácido sulfúrico, o autor de obras como Summa perfectiones magisterii, Liber fomacum, De investigatione perfectionis, De inventione veritatis. Leio por aqui e acolá para não confundi-lo com o alquimista árabe Geber (Jabir Ibn Hayyan), este, entre tantas descobertas, criador do alambique de modo a destilar o travesso espírito do vinho, ou al kohl. Mas penso no Falso Geber pelo mistério que o cerca, por seu anonimato, penso nele como matéria de simulacro, como matéria de ficção.]
[Deveras curioso que o médico Jan Baptista van Helmont (1579-1644) tenha batizado os ares de caos. Ainda agora, um redemoinho muito à maneira daquele que Riobaldo cismou ter visto com o demo dentro girou na minha esquina, tão caótico quanto uma dança luciferina.]
[Cada vez mais rio do bico dos meus sapatos. E digo: "Ó, sapatos, destituídos de filosofia".]
[O romance de Durst e Lila aconteceu exatamente naqueles dez dias abolidos pela Igreja Católica em 1582, para dar origem ao calendário gregoriano, ou seja, de 4 de outubro, pulou-se para 15 de outubro. Problema do papa Gregório XIII, porque Durst e Lila se fecharam em uma alcova do Castelo Jerst, da Bavária, exatamente nesses dias roubados do tempo por sugestão do astrônomo Christoph Clavius. Foram dez dias de um romance que, à época, conforme certos peregrinos desbocados, fez cair mamona de tão quente.]
[Caderno 1: Oito anos e 184 dias em Paris. Despeço-me, por fim.]
[Caderno 2: Amanhã, assumo novo posto de trabalho no Porto. O velho sonho de estar à beira do Douro.]
[Há pouco, enquanto observava o dorso das águas à luz da tarde, um grilo pousou em um pedregulho à beira do Douro. Um grilo verde. Muito magro e janota. Desengonçado, fora de lugar e expressando certo incômodo. Acho que nenhum portuense notou esse grilo verde à beira do rio. Creio que me olhava. Não sou especialista em olhares de grilos. Jamais poderei saber se, como eu, um grilo pode ser míope, se vê o mundo assim ou daquele modo. Mas não achei um despropósito deduzir que o grilo me olhava. Talvez quisesse conversa. Talvez quisesse dizer boa tarde em idioma de grilo, talvez desejasse um comentário sobre o tempo nublado. Nada disse. Nem ele, nem eu. Logo o grilo voou. Mas pode ser que nada disto tenha acontecido.]
[Ainda há pouco, passei pelo As Sogras, na Campo dos Mártires da Pátria. Não entrei, porém. Virei a esquina e segui pela Rua Caldeireiros em busca da tipografia que me foi indicada por Abderrahmane Ualibo. É bem provável que eu edite a noveleta aqui no Porto. Mas a editarei à moda antiga, não mais do que 50 exemplares compostos e rodados em prensa obsoleta, a caminho do desaparecimento. Faz bem esse tipo de gesto produtor de tais contrastes. Praticar o que já quase não existe ou está em vias de se tornar névoa. Depois beberei à beira-Douro uns bons tragos de Porca de Murça, em homenagem à edição destinada ao fracasso. O que são os livros senão esses fracassos acumulados?]

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