[SE É PAPEL, AO PÓ RETORNARÁ]



As dez caixas com a obra inédita do escritor ficaram um largo tempo empilhadas no escritório da Casa Cinza: cadernos, blocos, folhas soltas dentro de pastas, ora manuscritas, ora impressas e encadernadas.


Largo tempo, conforme bem entendem leitores de ficção indomável, pode ser o simbolismo mais apropriado para um ano, dois, três. Etc.

Até quando bateu as botas, o escritor viveu no escritório da Casa Cinza.

Ali chegava às seis da manhã; de lá saía quando os passarinhos e as galinhas se recolhiam ao mutismo da noite.

Quando a Casa Cinza foi vendida, um dos filhos levou as caixas para o sítio.

Quando o sítio foi vendido, um neto do escritor levou as caixas para um depósito que a família ainda possuía no bairro das Laranjeiras Baixas.

Mais um largo tempo as caixas com a obra inédita do escritor ali permaneceram. 

Até que uma das netas, a Corália, que estudava Letras no interior, propôs que a Universidade na capital abrigasse a obra inédita do escritor.

O professor Vanúsio Montes, responsável pela Arquivística Geral das Letras Locais, foi consultado. 

Analisou-se o papelório. 

Duas reuniões foram feitas com a Coordenação Semiótica de Obras Inéditas. 

Chegaram as férias natalinas.

No ano seguinte, outra reunião foi convocada para o veredito.

O professor Vanúsio Montes falou 45 minutos e quatro segundos. 

Todos os membros da Coordenação ouviram a douta explanação do professor.

Ele discorreu sobre a guarda de documentos, e falava em tom de violoncelo, muito solene, e com a aura da autoridade sobre o cocuruto.

Ao final, lavrou a sentença.

As dez caixas com a obra inédita do escritor não possuíam porte para ser integradas à Arquivística Geral das Letras Locais.

Lamentavelmente não atendiam aos apelos da posteridade, ele disse, com o rosto choroso de um poeta que declama um soneto.

Morria ali o intento da neta Corália de ver a obra inédita do avô protegida pela Universidade.

O novo plano diretor do prefeito Alírio Sultão incluía, na página 88, a remodelação urbanística do bairro das Laranjeiras Baixas.

Em outras palavras, casarões como o que abrigava o depósito seriam postos à terra para permitir novos viadutos ao modo de nó borromeano.

Na primeira segunda-feira de um mês de julho, inacreditavelmente quente, uma escavadeira surgiu na manhã e começou o seu trabalho de hecatombe.

Quem passou pelo bairro, certamente viu caixas de papelão entre os dentes da escavadeira.

Junto com carcaças de fogões e geladeiras, roupeiros do tempo da Revolução de 30, virabrequins e pneus, as caixas com a obra inédita do escritor foram descartadas dentro de caçambas. 

Mais tarde, despejadas no aterro sanitário da próspera cidade de Alírio Sultão.

Por um certo tempo, era comum o vento espalhar entre urubus folgazões a letra miúda que o escritor aperfeiçoara com lápis apontados a canivete.

Depois, vocês sabem, tudo aquilo virou pó, pois o que é papel um dia retornará inexoravelmente ao pó.

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