[PEQUENO AUTORRETRATO ATRAVÉS DO VERBO GOSTAR]

1. gosto do feijão ralo sobre o arroz alvo, do cheiro do araticum assim que aberto, do biscoito de queijo à moda do alto paranaíba, gosto da bolacha de rapadura de são gotardo; 

2. gosto de encher a boca com a polpa amarelo-ouro do jatobá, gosto da prosa de barthes e das frases enigmáticas e lacunadas de lacan e derrida;

3. gosto das imagens enlouquecidas e incendiadas de lezama lima, gosto dos textos aforismáticos de edmond jabès, das vozes em tom baixo, murmurantes, gosto dos blues do delta do mississippi;

4. gosto de abrir em duas a laranja e escavar seus gomos com a colher, gosto de conversar com os bichos, gosto do dia ainda escuro e de passar o café antes que amanheça;

5. gosto de um cálice de cachacinha antes do almoço e assim que o sol se põe, gosto de olhar para o nada do modo como fazem os gatos;

6. gosto de escrever à mão em dezenas de cadernos e blocos, simultaneamente, gosto de limão vermelho, chamado limão capeta;

7. gosto da história da rússia e das estepes, gosto dos autores esquecidos pelos séculos afora, gosto do doce de figo, gosto do verbo escutar e de quem o pratica;

8. gosto das sombras nas paredes ao sol do meio-dia, gosto de juan rulfo e graciliano;

9. gosto dos sapatos largos e velhos, gosto da farinha de milho e do fubá torrado sobre o feijão, gosto de catar feijão;

10. gosto das alegrias suaves e das tristezas sem dramatismo, gosto das histórias marítimas, gosto dos faroestes em preto e branco, gosto das fotos em preto e branco, gosto das aquarelas, gosto dos papéis rústicos e ásperos;

11. gosto das folhas que caem e das folhas que ficam, gosto de seguir o caminho das formigas, gosto de me sentir parte do mundo em que vive o sabiá;

12. gosto de me desviar dos chatos e energúmenos nas ruas desta cidade;

13. gosto de inventar verbetes para as coisas que encontro e reencontro;

14. gosto de não comparecer às sessões de autógrafos, gosto de imaginar o livro sem a necessidade das sessões de autógrafos, gosto de imaginar o livro que segue pelo mundo e deixa para trás o seu autor, gosto dos autores discretos que só falam por meio dos livros que escreveram;

15. gosto de não dar importância aos sabichões opiniáticos, gosto de rir dos que sempre têm razão, gosto de rir dos que fingem que não me viram, gosto de rir dos que fingem que não me leram;

16. gosto de me comover ao observar meus quatros filhos reunidos em volta da comida que lhes preparei;

17. gosto de praticar a escrita enquanto vou andarilho pelas cidades do mundo, gosto da expressão pés escreventes;

18. gosto de rir com deboche do provincianismo que ataca jovens e velhos, gosto de rir com pândega dos enturmados que não enxergam para os lados, gosto de rir e troçar dos que acham que o mundo começou com eles;

19. gosto dos lápis, gosto de apontar os lápis com a lâmina de um canivete, gosto de admirar os lápis em sua quietude imponente de conter a escrita em latência;

20. gosto de consertar textos alheios quando me pedem, gosto de puxar os textos das águas turvas do ininteligível e ilegível;

21. gosto de ser um escritor que jamais pediu bênção às chamadas divindades literárias;

22. gosto de rir e caçoar dos herdeiros literários, dos rentistas dos espólios literários;

23. gosto de rir e galhofar dos velhos e jovens jornalistas especialistas de tudo, doutores de tudo, palpiteiros de tudo;

24. gosto de rir e pilheriar dos escritores ainda presos a gêneros, os que ainda dizem coisas como "prosa poética";

25. gosto dos dicionários, e gosto de ler os dicionários como uma história dos espelhos ou labirintos da língua;

26. gosto de escrever pela manhã e de voltar a escrever assim que soam as badaladas das quatro horas da tarde;

27. gosto das quatro horas da tarde, e gosto de estar 24 horas por dia dedicado à escrita há mais de 40 anos;

28. gosto da palavra ponte, e do plural da palavra mão como a mais bela imagem da generosidade e da solidariedade;

29. gosto da experimentação como sinônimo da criação literária;

30. gosto de rir e gracejar do chamado meio literário com as suas trapaças, as suas armadilhas, os seus fingimentos, as suas camuflagens, o seu toma-lá-dá-cá tão perverso quanto o toma-lá-dá-cá da política.

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