[ESCREVENTES]

[Uns, efêmeros, escrevem na areia para que as ondas lavem e o sal corroa o corpo das letras, e para que a manhã dos mares seja testemunha, não de frases ou palavras, mas de restos de sargaços, de quilhas carcomidas de barcos, de lemes e mastros avariados, de espuma pela boca de peixes mortos.] 

[Outros, porque visionários, escrevem no bronze para que o vento, com os seus chicotes de vento, e o tempo, com o seu olho insone de tempo, sejam pelas letras derrotados, e para que os séculos, com seus galopes de potro, com seus cascos de potro cego, grafem no metal os próprios ossos das palavras.]

[Uns, diletantes, escrevem nos feriados ou então nas tardes de domingo, e esperam, primeiro um inchaço, depois uma eclosão, por fim, esperam descer do teto a matéria gelatinosa e plástica que lhes servirá de letras, com as mãos eles aparam esses nacos e essas porções grudentas, quase bolotas, e ainda com as mãos eles passam a lambuzar de norte a sul a página, até  submergi-la, até afogá-la em gosma, para, enfim, sonolentos, de tudo esquecerem.]

[Outros, porque furiosos, escrevem com a ponta de um punhal depositada sobre o fígado. Convém manter deles certa distância, embora o risco para quem deles se aproxima esteja menos no punhal e mais no líquido que eles fazem porejar da pele, um líquido gélido e ácido, sem brilho, porém volumoso ao ponto de ao final do dia envolvê-los com uma mantilha de luto, já quando as letras sobre a página tornaram-se irritadiças e ásperas.]

[Uns, precavidos, escrevem em linha reta para proteger suas frases dos abismos de um lado e outro da página, sempre avante é o que parecem dizer a todo instante, sempre avante com chumaços de algodão em cada orelha, sempre avante eles jamais permitem que o canto das sereias e as próprias sereias lhes venham roçar os corpos, e fazer dos corpos deles um país definitivamente conquistado.]

[Outros, porque urgentes, escrevem o quanto antes para que não sejam surpreendidos pela noite em algum ponto ermo do deserto. Chegar o quanto antes e aonde quer que seja é para eles uma lei. Talvez, por isso, as letras que lhes saem são às vezes dardos, às vezes flechas; são às vezes um susto, às vezes são sinais de rádio a anos-luz de nós, isto é, são fósseis de letras, como estrelas mortas.]

[Uns, delicados, escrevem com o braço em repouso sobre o dorso de uma pluma, provavelmente porque concebem as letras como se as letras fossem asas de libélulas. Convém dar a eles o direito ao silêncio, convém dar a eles o ambiente de claustro, pois, se o som  de um clarim é capaz de desmoroná-los, de igual modo e efeito, o rumor do mundo pode desintegrá-los.]

[Outros, porque bélicos, escrevem nos gumes de armas brancas como o punhal ou a adaga. Esses costumam ter olhos vermelhos e língua seca, nunca suspiram de saudade e quase sempre estão de emboscada. Convém, pois, não compartilhar com eles a mesma rua, o mesmo andar de edifício, muito menos a mesma música.]

[Uns, gagos, escrevem cobrindo os buracos e os intervalos que o silêncio faz entre as letras e vivem constantemente em estado de síncope. São, por tais motivos, propensos a ritmos ensandecidos e dissolutos. Quando irados, sovam as palavras com os punhos ou as atiram no chão para serem pisoteadas. Contudo, se felizes, costumam engenhar palavras engraçadas, algumas magras, outras obesas, algumas sólidas, outras feitas de bolha.]

[Outros, porque larápios, escrevem a meio caminho entre a luz e as trevas, uma parte do rosto sob a névoa, a outra parte sob a sombra. Seres noturnos e vicários, apreciam recolher palavras na bolsa alheia, mais pelo gosto de desnutri-las do que com a intenção de utilizá-las. Não à toa, costumam possuir sinistros depósitos de palavras em decomposição.]

[Uns, solares, escrevem concedendo às palavras respiradouros e claraboias, escotilhas e janelas. Mesmo palavras mais soturnas ou mais enlutadas recebem deles frestas de luz nas partes onde as letras foram cobertas pelo musgo, pelo mofo ou pelo lodo. Amigos do sol, esses escrevem com assovios formados ou em doce formação no côncavo dos lábios.]

[Outros, porque melancólicos, mais escavando do que escrevendo, procuram as regiões sem luz no corpo das letras, não propriamente trevas, mas certos carnegões ou furúnculos ali depositados pelo tempo. A tarefa principal deles, portanto, é furar esses carnegões prenhes de humor enegrecido e barrento, fazê-los escoar a baba e o visgo entre as frases, de tal modo que, no fim de cada dia, densas camadas de matéria semelhante ao piche foram espalhadas sobre o corpo da escrita.]

[Uns, feirantes, escrevem nas manhãs dos bairros suas palavras-legumes, suas palavras-folhudas, suas palavras-grãos, suas palavras-frutos. Ou então fazem exuberar, aos olhos leitores dos cachorros, bandas de leitões, frangos dependurados pelo pescoço, suãs de novilhos, pernis de cabritos. Convém observar a ânsia com que oferecem consoantes secas e vogais molhadas pelo megafone, convém observar como são artífices de cálculos contabilidades, convém observar como estão permanentemente em estado de prateleira.]

[Outros, porque tribunos, põem as palavras na ceva para que elas ganhem volume e peso, e adquiram banha, e se tornem suculentas. Só então eles aceitam utilizá-las nas frases, umas escolhidas pelo tamanho do dorso, outras pela exuberância das ancas. Convém de quando em quando revolver o lixo deixado por esses tribunos nos cantos da oficina, pois, ali, entre monturos, pedem socorro as palavras raquíticas, as palavras desnutridas e agônicas.]

[Uns, catequéticos, fazem das palavras animaizinhos de mando, amiúde as palavras saem deles para missões incumbências, muito frequentemente podemos vê-las em pregações pelas esquinas das cidades. Convém não dar ouvidos a essas palavras missionárias, menos pelo que elas propalam, mais pelo barulho ensurdecedor dos seus latidos e relinchos.]

[Outros, porque ourives, usam goivas e pontais de diamante para esculpir o corpo metálico das palavras. Faz bem aos olhos e ao coração observá-los tão enlevados neste ofício, faz bem observá-los tão meninos com suas palavras-anéis, suas palavras-braceletes, suas palavras-pingentes, todas em estado de baile.]

[Uns, suicidas, são dados a encaixar cápsulas de cianureto nos interstícios das letras, para então ingeri-las durante o sonho. Ou então preferem encharcar as letras com álcool ou gasolina, e assim, ao meio-dia em ponto de uma segunda-feira, e com a ponta acesa de um fósforo, escrevem cartas que jamais chegarão ao seu destino, pois incendiadas no meio do caminho.]

[Outros, porque acrobatas, equilibram as palavras em fios de aço no mais alto ponto do circo. Algumas palavras são postas em fila, outras são empilhadas, e formam torres, ou se abrem em árvores, ou então simulam máquinas e engenhocas. Todas porém são obrigadas a contorcionismos em volta do próprio eixo. Contudo, é aconselhável saber que, quase sempre, o sopro de um anjo invisível desfaz essas formações de letras e, sem a menor cerimônia, as atira sobre a plateia.]

[Uns, nômades, louvam o próprio ir sem rumo das palavras por países e continentes, nem bem elas chegam e já estão partindo, um comichão inexplicável movimenta ininterruptamente esses comboios de letras, nada os retém, nem o olhar das mulheres que acenam de um tombadilho, nem as crianças em condição de abandono. Errantes, as palavras desses nômades estão sempre em estado de adeus.]

[Outros, porque estrangeiros, são os que geram palavras com o mal-estar do desassossego, as palavras deles jamais estão onde se esperaria estivessem, sempre cometem um equívoco de lugar e destino, e os leitores que as leem, quando as leem, costumam orar por esses estrangeiros como se aconselha orar para os excomungados.]

[Uns, inocentes, teimam em andar com as suas sacolas de palavras pelas zonas de litígio, atravessam com elas os campos de batalha, quase sempre são abatidos, ou então são feitos prisioneiros, não muito raramente são amestrados. E enquanto há guerra e há litígio, cumprem a ordem de divertir combatentes e comandantes em suas solidões de pernas atrofiadas, de olhos vazados, de vísceras à mostra.]

[Outros, porque usurários, põem pela manhã no cofre palavras gestadas durante a noite, anos a fio e para todo o sempre eles trancafiam em cofres as suas palavras-apólices, nada, ninguém os demove deste segredo, ninguém os convence ao gesto de soltar uma palavra matinal nos céus dos homens.]

[Uns, por fim, irremediáveis e danados, escrevem porque estão para todo o sempre e eternamente dentro de um círculo de fogo.]

[Outros, porque limítrofes ao círculo de fogo, escrevem e escrevem, escrevem para sempre escrevem, nada mais fazem do que escrever, sempre estiveram e sempre estarão destinados a escrever, não dormem, escrevem, não pulam dos edifícios nem tomam cicuta, eles escrevem, o fim é anunciado pelas trombetas, eles escrevem, as cidades são consumidas pela peste, eles escrevem, escrevem em busca e crentes da salvação que não há.]

[Escreventes, livro produzido 
artesanalmente, edições 2 luas, Belo Horizonte, 1998]

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