[JORGE, ONDJAKI, EU E OS MENDRUGOS]

A Manuel Jorge Marmelo, perguntei se ele conseguia ver os mendrugos na árvore cuja copa, ao sol da tarde, como que se aninhava em uma terna moldura, a moldura que a janela do Bar Xenofonte mantinha sempre aberta em seu lado oeste, o oeste da cidade baixa, para os lados em que o Córrego Alecrim fazia doce curva, e onde pescadores sem ilusões jogavam seus anzóis mais em busca de silêncio do que de peixe. Jorge, em seu paletó novo, paletó que ganhara da Mulher da Aura Azul, sorveu um pouco do néctar de um cálice minúsculo e translúcido, baforou duas espirais de fumaça, e disse que não, não conseguia ver os mendrugos na árvore, tentava mas não conseguia ver além de folhas e galhos, além de luzes e cores, além brilhos e rebrilhos naquela paisagem.

Ondjaki, a exibir um bigodinho quase imperceptível, sorriu como um menino peralta pelas ruas de Luanda, e disse que os mendrugos eram invenções minhas, eu que, já velho, dera agora de buscar na copa das árvores as deidades invisíveis. E brindou também com o seu cálice para festejar com Jorge as minhas doidices, ele e Jorge, irmanados, como que comungavam em reavivada infância as artes da travessura. Atribuíam-me alopragens. Mendrugos não existiam. Pelo menos ali pelos fotogramas da janela, a janela que o Bar Xenofonte ofertava aos clientes vindos de todas as partes do continente, marujos e vendedores de anéis, músicos e artistas de circo à espera do próximo barco, pois era ali uma rota para o Oriente, lá onde a terra acaba e o mar torna-se miragem.

Achei então por bem não insistir no tema. Tínhamos o compromisso de levar um buquê de sempre-vivas para Ana Paula Tavares. Pegaríamos o comboio de dali a pouco, cruzaríamos os campos secos dos anões cantores, passaríamos pelo Túnel do Buda Perácios, desceríamos pelo Desfiladeiro das Musas Garbosas, chegaríamos a um ponto onde um braço do Tejo (outro Tejo, Tejo pouquíssimo conhecido) arrodeava e serpenteava umas colinas muito aprazíveis, muito verdes, não muito distantes do sobrado chamado por nós de Casa das Ficções Suaves. Era ali que entregaríamos o buquê para Ana Paula Tavares. 

Brindamos os três com as nossas bebidas. Conversamos sobre alaúdes e formigas. Demos o nosso adeus ao dono do Xenofonte. E eu, com o silêncio que eu guardava em caixa de madrepérola, acenei para os mendrugos na árvore. Aceno sorrateiro e à socapa, de modo que Jorge e Ondjaki não percebessem quão séria a minha propensão em ver tais seres.

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