[OS ESQUISITOS, COMO NÓS, À BEIRA DO DOURO]

["Nenhum de nós recorda o texto da lei que obriga a recolher folhas secas", diz Julio Cortázar ali pela página 129 de A volta ao dia em oitenta mundos, quarta edição da Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, outubro de 1968. Ndalu, que é versado nesses temas um tanto em desuso, e é capaz de paradas súbitas na rua ao ter o olhar atraído para uma pedra, um besouro morto ou um papel com letrinhas manuscritas, propôs a Jorge um jogo enquanto caminhávamos pela manhã à beira do Douro. 

Vínhamos de Dublin, fizemos uma parada de dois dias no Porto, mas o nosso destino era mesmo Havana, pois ali, naquele mês de agosto, participaríamos do XX Encontro dos Livros e Personagens Inexistentes. "O jogo consiste em ativar em nós o fervor para a esquisitice", explicou Ndalu. 

Soprava do Douro um ventinho travesso e mefistofélico. Caminhávamos lentamente e descompromissados. E havia como que um ritmo frásico de lerdo e preguiçoso soneto em nossos pés. Em meu bolso, o bolso direito da camisa, palpitava uma carta que recebera do professor baiano Otto com 22 sugestões para livros e personagens inexistentes. Uma carta que, confesso, seria de utilidade imensa no encontro cubano. 

Ndalu, então, explicitou um pouco mais o jogo ativador de esquisitices, que seria uma espécie de circuito cerebral inexplorado, posto que marginal à ordem do comum e do usual naqueles dias em curso pelo mundo. Esquisitar seria o verbo maestro nesse jogo que a visão do Douro instigava, que os passos de caminhantes sem pressa estimulavam, que a perspectiva da travessia atlântica dali a dois dias motivava.

Éramos três amigos irmanados pelos livros e pelas histórias. A invenção de fábulas nos unira ao longo dos anos, e éramos capazes de engenhosas viagens, ora Bagdá, ora Minsk, ora Manaus, ora Praga, mesmo que na quietude de não sair do lugar. E jogávamos o jogo proposto por Ndalu. Lançávamos em voz alta hipotéticas concepções sobre a frase de Cortázar sobre as folhas secas. Dizíamos palíndromos às moças que passavam àquela hora da manhã, ou então tecíamos elogios aos chapéus dos senhores que, como nós, iam e vinham, à beira-Douro. As moças, sob ação palindrômica, sorriam; os senhores, com a sisudez destoante com a luz matinal, trancavam ainda mais os semblantes. 

Até que vimos, adiante, ungido por um prisma de luz, um menino. Soubemos, depois, que se tratava do Menino Recolhedor de Folhas. Virtuose no ofício, ele dispunha as folhas secas em estantes dentro de um caixote. Parecia uma biblioteca de livros sem títulos e sem personagens. Mas era coisa tão bonita de se ver que mereceu de nós saudações e vivas ecoantes-altissonantes pela manhã portuense.]

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