[KANT E A RAZÃO PURA NA TARDE DO BAIRRO]

[kant tomou a razão pura entre as mãos, moldou-a, agregou à massa ingredientes próprios para a goma, sovou a razão pura com esmero e vigor, e então, quando a bolota já adquiria uma consistência elástica, ele esticou a razão pura sobre a mesa, esticou-a de um canto a outro daquela mesa onde as melancolias costumavam cantar boleros e tangos.] 

[depois kant puxou a bolota da razão pura de modo que, da longa tira emborrachada, bem esticada, pudesse soar um dó maior ensolarado pela tarde do bairro.]

[e os meninos.]

[e os meninos, toda a criançada de pés no chão e narizes líquidos, toda a meninada do bairro logo pôs caras e carinhas nas janelas.]

[os meninos viram quando o dedicado kant dedilhava com o dedo mindinho a goma esticada da razão pura.]

[os meninos viram aquilo.]

[eles viram aquilo e acharam muita graça.]

[como é que o velho kant havia conseguido fabricar tal razão pura esticada sobre a mesa das melancolias?]

[parecia até uma corda de viola, pois o dó maior atiçou curiosidades na rua do meio, depois na rua de cima, depois na rua sem nome, e mais depois ainda na praça das metafísicas obscenas.]

[mulheres sem-que-fazeres logo apareceram, os aposentados deixaram o jogo de damas, poetas boquiabertos caminharam por fios incandescentes.] 

[e todos, todos os homens-vírgulas e as mulheres-reticências puseram pescocinhos e olhinhos para fora, parecia que o brasil vinha inteiro lançar olhos famintos sobre a razão pura do velho kant.]

[isto é: a razão pura esticada e musical naquela tarde de julho.]

[frio fazia, luvas e os cachecóis dançavam a dança das nuvens, o dó maior da razão pura blimblava blins-blons pelo bairro afora, e paulinho assunção, o fantasma, posicionou o estilingue em direção às vidraças.]

[foi um tiro certeiro.]

[tiro certeiro de pedra redonda na vidraça da literatura sorridente.]  

Comentários