[era aprazível ouvir o diálogo entre o livro-que-ninguém-viu com o livro-que-ninguém-leu naquela manhã com as luzes em pencas e em cachos.]
[luzes em pencas e em cachos são parentes próximas das frutas, as frutas que se abrem à orgia das abelhas e dos passarinhos.]
[o diálogo entre o livro-que-ninguém-viu com o livro-que-ninguém-leu se dava, pois, em manhã com tais peculiaridades iluminadas.]
[mas não era diálogo versado em abandono. nem era diálogo contaminado pela melancolia.]
[no diálogo, os dois livros tratavam de pontas, bordas, extremidades, istmos, penínsulas e outras fímbrias próprias das finisterras.]
[de quando em quando, falavam de barcos que jamais chegavam, barcos que, perto de um destino, logo recuavam e mais uma vez rumavam para os largos desconhecidos dos mares.]
[de quando em quando, também contavam de certos vãos por onde os silêncios costumam fazer seus ninhos.]
[ou então procuravam palavras quentes para a definição mais exata de corpos acoplantes.]
[o livro-que-ninguém-viu era mais magro de páginas, uma centena e meia, em tipografia exótica e minúscula.]
[o livro-que-ninguém-leu, por sua vez, ostentava a grandiosidade das enciclopédias e dos dicionários, o que lhe impunha voz lenta e de sinuosidade consonantal.]
[nós, anjos decaídos por força da doença do verbo, ao largo ficávamos para não perturbar esse diálogo de sabedoria sem plumas.]
[e a manhã, com as suas pencas e cachos de luzes, envolvia a paisagem como se um manto feito de letras.]
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