[OUTRAS ÁGUAS]


[Torto por linhas tortas foi o modo que encontrei para exercer em mim as palavras em condição de viventes]

[Em épocas de primeiros êxtases, costumava rastrear delas as pegadas, os rastros, as manchas, como se fossem gentes em êxodo]

[Sonhei recados de umas para as outras nas vísceras do não dito nem escrito]

[Sonhei bilhetes no carvão, no fogo e nas cinzas, naquilo que restou das algaravias]

[Imaginei tratados filosóficos em ossos e fósseis de vocábulos]

[Vi pedaços do que eu fantasiava um dia escrever nas sementes deixadas na tumba dos faraós]

[E veio o dia em que olhei o mundo e o mundo era feito de letras e alfabetos]

[Foi então que fantasiei uma caixa de escrever, uma caixa de escrever com gavetas lacradas que descobri não terem chaves nem manual de instruções para abri-las]

[Torto por linhas tortas descobri que investigar palavras é diferente do ofício do anatomista que cinde um cadáver]

[Torto por linhas tortas soube que o matiz nelas existente é diferente do que há de matiz por exemplo no ventre de uma pedra]

[O que nelas há de peso e volume é diferente do peso e do volume que se apreende da mensuração de um tijolo]

[Nem adianta jogá-las em um poço a fim de que produzam os sons ou os ecos de uma moeda]

[Nem adianta querer delas o ritmo que vem da baqueta sobre o tarol ou sobre o bumbo, esses ritmos de fanfarra]

[Torto por linhas tortas descobri o quanto de falácia há no ato de encerrar palavras dentro de uma garrafa]

[Torto por linhas tortas restringi meus êxtases a um sol todo estilhaços vazado por uma janela e pintor de ideogramas nas paredes]

[Torto por linhas tortas fui até Rimbaud, mas tive de levar pincel e tinta a fim de dar cor à cor que ele disse ter visto em suas vogais]

[Tocar as palavras do modo como se toca uma coisa foi o maior dos meus enganos]

[Torto por linhas tortas vi que nem a palavra coisa pode ser tocada à maneira dos corpos]

[A pedra e a mão, sim, formam uma parelha em estado de núpcias e se tocam à maneira de amantes]

[Também parelhas núbeis são a mão e o graveto, a mão e o estilete, a mão e o cinzel, a mão e a goiva, a mão e o cálamo, a mão e a pena de pato, a mão e o pincel, a mão e o lápis]

[Falácia é dizer que a tinta contém fetos de letras e de palavras, pois a tinta é um mero aquém à espera, quando muito um dos murmúrios da cópula futura]

[Palavras podem ser depositadas sobre paredes mas nem por isso terão a consistência dos ovos de uma vespa]

[Palavras podem ser riscadas na areia mas nem por isso o boi vem lambê-las ou o lagarto engoli-las]

[Palavras no granito dissolvem-se na coisa-lápide ou na coisa-estátua, nada mais]

[Falácia é flagrar milagres de palavras em tecido, couro, pergaminho ou papel nos quais estejam incrustadas]

[Falácia é dividir as palavras entre vazias e cheias, entre substantivas e adjetivas]

[Falácia é dividi-las entre escuras e iluminadas]

[Torto por linhas tortas vim a descobrir as similitudes de umas com todas, de todas com nenhuma]

[Torto por linhas tortas descobri ser falácia palavras com chips ou circuitos de néon em suas entranhas]

[Não há estado de coisa nas palavras em escrita cuneiforme, há, sim, estado de coisa na substância barrenta dos tijolinhos de escrever]

[Coisa é o papel, coisa é o caderno, coisa é o livro, coisa é a tela do computador]

[Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras não são da ordem da matéria, mas da ordem das povoações]

[E talvez quem saiba delas sejam os santos desmobilizados e sem igreja, os santos expulsos da ordem das santidades]

[Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras são também da ordem das miragens]

[Reduzi assim meus êxtases à contemplação da mímica de luz e sombra que há no território das palavras]

[Por exemplo, a mímica da doçura, quando é de favo que elas se mimetizam]

[Por exemplo, a mímica do calor, quando é com fogo que elas nos ilusionam]

[Sob luz de vela, dentro de um claustro, um monge escreve a sua própria hipnose]

[No escritório, com a escrivaninha frente à janela, ou na praça, com o caderno sobre os joelhos, um ilusionista erige no ar palavras em dissipações]

[Num café de Paris, o escrevente sonâmbulo constrói hieróglifos mais leves do que o ar]

[Foi torto, por linhas tortas, que outras águas eu percebi na corrente que subjaz o rio das palavras]

[Coisa é o som que faz um homem na máquina de escrever, coisa é a cadeira anatômica diante do computador]

[Coisa é a cidade de Alexandria, coisa é a biblioteca de Ptolomeu]

[Num mosteiro do fim do mundo, o primeiro e o último livro se enlaçarão com seus braços ou tentáculos de alfa e ômega]

[Todos os dias um falso Gutenberg sonha palavras de gesso encarceradas na página de um livro]

[Torto por linhas tortas descobri ser o Diabo um deslegente tanto quanto Deus é o seu deslido]

[Só torto por linhas tortas pude acompanhar o fio de Ariadne por entre as estantes da biblioteca de Borges]

[Falácia é dividir as palavras entre as ardentes e as frias]

[Torto por linhas tortas descobri que as palavras são da ordem dos fios que ligam um lado e outro do abismo]

[Meu êxtase é ter hoje com elas o convívio das gentes serenadas, das gentes desafligidas de bando]

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