[A ÚLTIMA CARTA DE UMA LEITORA DE FRANCIS PONGE]

["a grande lei do mundo é o desentendimento", ela assim escreveu em sua carta ao amigo. na verdade, a sua última carta.

sempre prezava e praticava a escrita de cartas à maneira mais antiga. a caneta tinteiro que herdara do avô. o papel de maior gramatura, sempre cinza. o envelope branco. a dobradura da carta em quatro vezes. a ida ao posto dos correios. a satisfação de ter saciado o prazer de remetente.

aquela era uma carta não muito longa. duas folhas e meia em letra miúda, um tanto arredondada. e diferia de outras cartas costumeiramente enviadas a esse amigo: as outras, com amenidades, mais em forma de diário das peripécias cotidianas; esta, com um travo amargo da descrença. parecia um manifesto ao ceticismo.

tinha sido leitora fervorosa da obra de francis ponge. com o poeta francês, havia aprendido a voltar-se para os objetos, neles penetrar a agudeza da análise, girá-los entre os dedos, em busca de um melhor entendimento do mundo. a partir dos objetos, fecundar palavras novas, despidas da ferrugem e do óxido do uso comum.

e agora, nesta carta, parecia nem mesmo contar com o fervor dedicado à poética de ponge. descria. "desmilinguia-se", como escreveu em uma das frases. sentia-se agora anêmica diante da possibilidade de entendimento entre os homens.

"olho para o meu país e já não me sinto parte dele", anotou mais adiante. "tudo se esfarela, é como se toda a matéria se desfizesse em torrões de uma farinha envelhecida", acrescentou.

durante muitos anos, ensinara língua portuguesa para crianças. depois viajou. foi à finlândia, à dinamarca, à suécia. viveu alguns meses em santiago do chile. abriu um bar com um irmão no bairro são pedro, em belo horizonte. desistiu do comércio. poeta sem livro publicado, nos anos 1980 enviava de quando em quando um poema para um suplemento literário.  

"vigor retesado, alegria multiforme, famélica e inveterada" eram expressões que usava com frequência para descrever seus louvores  à vida. "a vida é um troço comível e bebível", dizia. até que veio o deserto. até que veio a secura. até que veio a aridez. "os brasileiros estamos destinados à extinção", escreveu na última folha.

ontem, esse amigo destinatário de todas as suas cartas, e ainda com a última carta entre as mãos, soube do acontecido.]