[O CONTO ERA: "O NOME DELE ERA FACÍNORA DE SOUZA"]
Facínora de Souza foi o nome que aplicamos no chefe dos chefes. Ele nunca soube. Se soube, calou-se. Mas até quando viveu, levava nas costas esse nome dito pelos cantos e penumbras da repartição.
No seu enterro, naquele mesmo dia em que a revolução começava no País do Sul, muitos de nós, à beira-cova, ainda pronunciamos em voz soturna o apelido infame. "Adeus, Facínora de Souza". "Nunca mais volte, Senhor Facínora de Souza".
Foi um enterro quase operístico. Só faltou um tenor esponjoso em alguma ária de sarcasmo.
Certo é: os que fomos criando mofo e fungo dentro da repartição pelos anos de convivência, todos nós vitalícios nas funções de carimbar papel e arquivar papel, éramos dados a tais desobediências com as chefias. Vinha um magistrado novo, logo achávamos para ele um tesouro vocabular de escracho.
Mas Facínora de Souza era o mais apetitoso de dizer, pois Facínora de Souza era o chefe dos chefes, vinha de uma dinastia de bacharéis, e até os cachorros da família pareciam usar toga e latir em vade mecum. Razões sobravam para os nossos destemperos ofensivos.
Quando a revolução começou no País do Sul, achamos bom. Logo espalharam-se as notícias sobre derrubadas de estátuas e monumentos, sobre a distribuição de fortunas aos mendigos, sobre a invasão de palácios e mansões pelos que nada tinham nem nunca tiveram. A revolução era especial, nos diziam os que moravam perto da fronteira.
Aquela era uma revolução sem chefias, sem comandos, parecia um oceano revolto, selvagem, sem perdão. Cada indivíduo sulino praticava o desejo de colocar abaixo a antiga ordem empilhadeira de riquezas. "Muito bom", comentávamos dentro da repartição.
Cada um de nós trazia no tornozelo uma cadeia de aço ligada a uma corrente, por sua vez amarrada a um bloco de pedra no centro de cada sala. Corrente curta significa início de carreira. Corrente longa era usada pelos que já criavam mofos e fungos por antiguidade na repartição.
Quando um de nós morria, a corrente usada pelo morto a vida inteira ia junto, trançada e retrançada dentro do caixão. As saudações fúnebres eram proibidas, mas éramos obrigados a arrastar nossas correntes aos sepultamentos. E o nosso cemitério trazia no pórtico a inscrição: "Morada dos Acorrentados".
Não sonhávamos. Nunca sonhávamos. Por isso, todas as manhãs, era comum alguém perguntar ao outro em voz temerosa e aflita:
"Sonhou na noite passada?".
Pelo silêncio, sabíamos do nosso destino de sonhadores fracassados.
Os papéis eram carimbados e arquivados incessantemente. Jamais líamos o que carimbávamos e arquivávamos. Os papéis chegavam em caixas e eram distribuídos pelas mesas pelos funcionários mais antigos com uma única ordem: "carimbar e arquivar".
De quando em quando, um magistrado, daqueles mais balofos e oblongos, com a indumentária sempre negra, passava de mesa em mesa. Nada dizia. Apenas lançava a esmo o olhar de vidro. Tremíamos. Alguns de nós choravam aquele choro para dentro como se uma pedra lançada para dentro de um poço.
Todos esses acontecimentos nunca serão narrados ou contados em qualquer livro, em qualquer documento. E o que você leu acima nada mais é do que uma história difusa, opaca, garatujas a carvão, ilegíveis, sobre um papel inexistente. E é uma tristeza que a vida dos leitores seja assim consumida dentro de um limbo.
No seu enterro, naquele mesmo dia em que a revolução começava no País do Sul, muitos de nós, à beira-cova, ainda pronunciamos em voz soturna o apelido infame. "Adeus, Facínora de Souza". "Nunca mais volte, Senhor Facínora de Souza".
Foi um enterro quase operístico. Só faltou um tenor esponjoso em alguma ária de sarcasmo.
Certo é: os que fomos criando mofo e fungo dentro da repartição pelos anos de convivência, todos nós vitalícios nas funções de carimbar papel e arquivar papel, éramos dados a tais desobediências com as chefias. Vinha um magistrado novo, logo achávamos para ele um tesouro vocabular de escracho.
Mas Facínora de Souza era o mais apetitoso de dizer, pois Facínora de Souza era o chefe dos chefes, vinha de uma dinastia de bacharéis, e até os cachorros da família pareciam usar toga e latir em vade mecum. Razões sobravam para os nossos destemperos ofensivos.
Quando a revolução começou no País do Sul, achamos bom. Logo espalharam-se as notícias sobre derrubadas de estátuas e monumentos, sobre a distribuição de fortunas aos mendigos, sobre a invasão de palácios e mansões pelos que nada tinham nem nunca tiveram. A revolução era especial, nos diziam os que moravam perto da fronteira.
Aquela era uma revolução sem chefias, sem comandos, parecia um oceano revolto, selvagem, sem perdão. Cada indivíduo sulino praticava o desejo de colocar abaixo a antiga ordem empilhadeira de riquezas. "Muito bom", comentávamos dentro da repartição.
Cada um de nós trazia no tornozelo uma cadeia de aço ligada a uma corrente, por sua vez amarrada a um bloco de pedra no centro de cada sala. Corrente curta significa início de carreira. Corrente longa era usada pelos que já criavam mofos e fungos por antiguidade na repartição.
Quando um de nós morria, a corrente usada pelo morto a vida inteira ia junto, trançada e retrançada dentro do caixão. As saudações fúnebres eram proibidas, mas éramos obrigados a arrastar nossas correntes aos sepultamentos. E o nosso cemitério trazia no pórtico a inscrição: "Morada dos Acorrentados".
Não sonhávamos. Nunca sonhávamos. Por isso, todas as manhãs, era comum alguém perguntar ao outro em voz temerosa e aflita:
"Sonhou na noite passada?".
Pelo silêncio, sabíamos do nosso destino de sonhadores fracassados.
Os papéis eram carimbados e arquivados incessantemente. Jamais líamos o que carimbávamos e arquivávamos. Os papéis chegavam em caixas e eram distribuídos pelas mesas pelos funcionários mais antigos com uma única ordem: "carimbar e arquivar".
De quando em quando, um magistrado, daqueles mais balofos e oblongos, com a indumentária sempre negra, passava de mesa em mesa. Nada dizia. Apenas lançava a esmo o olhar de vidro. Tremíamos. Alguns de nós choravam aquele choro para dentro como se uma pedra lançada para dentro de um poço.
Todos esses acontecimentos nunca serão narrados ou contados em qualquer livro, em qualquer documento. E o que você leu acima nada mais é do que uma história difusa, opaca, garatujas a carvão, ilegíveis, sobre um papel inexistente. E é uma tristeza que a vida dos leitores seja assim consumida dentro de um limbo.

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